Estávamos
na fila do raio-X no aeroporto de Frankfurt, passando pelos constrangimentos
que se tornaram corriqueiros na aviação. Tira-se os sapatos, o cinto, deita-se
numa caixa plástica chaves, moedas e demais objetos que contenham metal. Passam
todos pelo portal detector. Se algo acusar uma presença suspeita um agente
aproxima-se e inspeciona o candidato a terrorista com um detector manual.
Quando enfim passam, agradecidos sem ter por que agradecer, com o cinto na
cintura e os devidos sapatos nos pés, manifestam todos uma tola satisfação,
agradecidos pela restituição do direito de ir e vir que nunca perderam. São
subtrações de liberdade às quais todos se acostumaram.
A
companhia aérea seria a Lufthansa, mais que renomada. Sua frota não é velha e
conta com uma manutenção talvez sem igual por conta da reconhecida competência
alemã, sobretudo na área da mecânica. Entre os objetos que depositei na caixa
sobre a esteira do raio-X estava um crucifixo que me acompanha. O funcionário
alemão, com certo desdém, perguntou por qual companhia voaríamos. Quando disse
a ele que seria pela estatal alemã, olhou para o crucifixo e disse que então eu
não precisaria dele.
Não
gostei da brincadeira e após o exame da nossa bagagem de mão, enquanto
recolocava o crucifixo no bolso da camisa, refleti sobre a soberba. Engenheiro
que ama sua profissão, nunca acreditei que o comando das coisas está em nossas
mãos. Lembro da infeliz resposta que o construtor do Titanic, Thomas Andrews,
teria dado a uma repórter que indagou sobre a segurança da embarcação: “Minha filha,
nem Deus afunda este navio”. Mesmo que
nunca tenha pronunciado esta máxima de imprudência, é certo que os homens se
comportam frequentemente desta forma, esquecidos de que a vida não lhes
pertence.
Ainda
hoje me espanto com algumas manifestações de fé inconsistente, como a que
escutei dias atrás de um amigo de infância, ex-aluno, como eu, do Ginásio São
João Batista, quando se referiu aos ensinamentos que lá tivemos. Pecado
original? Uma bobagem! Como pode uma criança nascer com pecado? Que conversa
mole! Uma mentira! Repetida apenas para controlar a humanidade! Faltou tempo
para aprofundarmos o assunto e receio que a conversa não seria muito produtiva.
Disse a ele tão somente que mantivera a crença e o convidei a refletir sobre a
perfeição e encadeamento do mundo. Mas ficou para uma próxima oportunidade a
convocação para que pense a respeito da vaidade que a todos acompanha, ainda
que a uns mais e a outros menos. A vaidade, levada aos píncaros de sua estupidez,
resulta na soberba de tentar igualar-se a Deus para decidir o bem e o mal. Eis a
essência do pecado original. Quem está livre dele?
Numa
época em que aumenta o número dos que se dizem agnósticos, ou mesmo ateus, me
causa espécie quando vejo um ateu vaidoso. Ora, se Deus não existe e tudo é
fruto do acaso, cada um de nossos passos é maquinal. E mesmo o que poderíamos
chamar de vontade não passa de um espasmo, de um conjunto de contrações e de pura
química cerebral. Como a vaidade só poderia brotar do que se faz com domínio,
como alguém pode se envaidecer do que não passa de causalidade mecanicista?
Como atribuir-se mérito se ninguém é bom, simpático, generoso, capaz, inteligente,
virtuoso senão pela infernal cadeia mecânica de causas e efeitos?
Pensei
um pouco nisto tudo quando fomos bombardeados pelas patéticas informações
acerca do acidente que vitimou uma centena e meia de pessoas nos Alpes
franceses. Tudo causado por um copiloto que trancou-se na cabine de comando e
transformou a aeronave num míssil. Segundo uma ex-namorada, o maluco teria
previsto que um dia seu nome seria famoso no mundo inteiro. Ou seja, por mais
absurdo que pareça, ainda que com o cariz da loucura, o sujeito tinha a vaidade
de se tornar famoso.
A
essência do que se passou nos últimos minutos do voo é de domínio público e
tudo foi lançado na conta da insanidade. Mas tornar os passageiros e demais
tripulantes espectadores da tragédia foi mais que insano. Pode-se imaginar a
gritaria geral e o desespero do piloto que a golpes de machado fracassou na
tentativa de entrar naquela caixa-forte. O descenso de minutos para a morte, prefácio
necrológico, foi muito mais que insano. Foi diabólico. Foi demoníaco.
J. B. Teixeira |
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