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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Alicerce

Anos atrás me intrigava o peso das tentações humanas. Imaginava o embate entre o que se pode mas não se deve fazer e a consciência de cada um, normalmente mais rigorosa do que parece à primeira vista. Acompanhei, à época, de longe, a vida de um casal muito infeliz. A esposa era, como se diz, louca de pedra. Ele, pouco tolerante, crítico e disciplinado. Ela, uma chantagista notória. Fora uma criança mal educada, que lera o comportamento de seus pais e os tinha na conta de frouxos. Deve ter sido daquelas que se atiram no chão, esperneiam, sapateiam, berram. Adultos mal educados foram crianças mal educadas. Ora adultos, só não se atiram no chão. Não por conta de pudores, que não prezam, mas porque sujariam a roupa.

Num belo dia o marido me segredou a única arma de que dispunha. Sofrido pelos despautérios da maluca, percebeu que o bate-boca só gerava amargura, que seus argumentos sólidos perdiam-se em estéril desgaste. O que decidiu fazer? Passou a dizer à sua esposa, nos piores momentos, que ela deveria agir segundo sua consciência. Fez isto uma, duas, três vezes e percebeu que descobrira o ovo de Colombo. Por anos a fio dissipara palavras e bílis, branqueara a fonte e entristecera. A vara de condão - eureca!,- era simples e barata: o convite à observação das exigências da consciência. A tática não transformou a maluca, apenas poupou ao marido um desgaste ainda maior. O que este pobre marido já sabia? Que os loucos frequentemente acabam se dando bem. Porque se lixam para os escândalos, ao contrário dos normais, que prezam pela discrição, pela elegância, pelo equilíbrio. O que este marido descobriu quando adotou a solução que descrevi? Que até os loucos têm consciência. E que esta os controla muito mais que qualquer pressão, discurso ou falatório. Porque a consciência vem de fábrica.

A questão que se coloca é simples e direta: como se deve educar os filhos e os cidadãos? Ora, cada um tem sua receita, naturalmente, e paladar não se discute. Falar da educação dos próprios filhos já não é uma tarefa fácil, o que dirá dos filhos dos outros. A receita que aprecio, particularmente, não tem segredo. Vem de longe, do tempo em que se tentava criar adultos. Coisa meio fora de moda e de implementação cada vez mais difícil com a geração Peter Pan.

Há entre os judeus uma celebração que admiro, um ritual de passagem chamado Bar Mitzvá. Trata-se de uma cerimônia que insere meninos judeus no mundo dos adultos e os torna responsáveis por seus atos. O detalhe crucial é que tal evento se dá quando os meninos completam treze anos. Neste momento lêem a Torá – o Pentateuco para os cristãos,- e seus pais não respondem mais pelos seus atos. O momento é festivo e se o ambiente permite cada menino é conduzido numa cadeira na cerimônia do mazal-tov, algo entre o boa sorte e o parabéns. Em nosso universo os jovens em geral aguardam com grande ansiedade seus dezoito anos, quando então poderão obter a carteira de motorista e entrar em sessões de cinema sem restrições etárias. Ou seja, aos dezoito conquistam direitos sem que a eles se imponham obrigações. Passam então a sonhar com um carro, que lhes trará a almejada liberdade.

Assim, enquanto nossos jovens aos dezoito anos andam às voltas com futilidades, os meninos judeus aos treze conquistam o direito de ler a Torá e assumem sobre seus ombros a responsabilidade ética e religiosa dos adultos. Impossível incutir numa cultura, de repente, as qualidades de outra e naturalmente não estamos a invejar os atributos dos meninos judeus, senão a admirar uma faceta desta cultura que desde cedo procura forjar adultos.

A infantilização de nossos jovens é tão marcante que o processo vocacional é cada vez mais tardio. Muitos deles, talvez a maioria, chegam nos dezessete ou dezoito anos sem saber o que desejam ser. Mas sabem muito bem o que desejam ter. Para estes jovens os fins não justificam os meios. Os meios sequer existem. Este desarranjo recebe contornos definitivos com a patética cumplicidade dos pais - mais os remediados que os pobres,- que de alguma forma incentivam este mundo dos nefelibatas. Na minha juventude – e não faz tanto tempo assim,- amigos e colegas também tinham a ânsia da independência, esta sede saudável de andar com as próprias pernas, ainda que puxando o arado dos sacrifícios cotidianos. Queríamos ajudar nossos pais, que até então puxavam solitários a carreta em que permanecíamos sentados. Não precisamos nos aculturar mas o espírito do Bar Mitzvá faria muito bem aos que querem o fruto sem o caroço.

J. B. Teixeira



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