Anos atrás me intrigava o peso das tentações humanas. Imaginava o
embate entre o que se pode mas não se deve fazer e a consciência de cada um,
normalmente mais rigorosa do que parece à primeira vista. Acompanhei, à época,
de longe, a vida de um casal muito infeliz. A esposa era, como se diz, louca de
pedra. Ele, pouco tolerante, crítico e disciplinado. Ela, uma chantagista
notória. Fora uma criança mal educada, que lera o comportamento de seus pais e
os tinha na conta de frouxos. Deve ter sido daquelas que se atiram no chão,
esperneiam, sapateiam, berram. Adultos mal educados foram crianças mal educadas.
Ora adultos, só não se atiram no chão. Não por conta de pudores, que não prezam,
mas porque sujariam a roupa.
Num belo dia o marido me segredou a única arma de que dispunha.
Sofrido pelos despautérios da maluca, percebeu que o bate-boca só gerava
amargura, que seus argumentos sólidos perdiam-se em estéril desgaste. O que decidiu
fazer? Passou a dizer à sua esposa, nos piores momentos, que ela deveria agir
segundo sua consciência. Fez isto uma, duas, três vezes e percebeu que
descobrira o ovo de Colombo. Por anos a fio dissipara palavras e bílis,
branqueara a fonte e entristecera. A vara de condão - eureca!,- era simples e
barata: o convite à observação das exigências da consciência. A tática não
transformou a maluca, apenas poupou ao marido um desgaste ainda maior. O que
este pobre marido já sabia? Que os loucos frequentemente acabam se dando bem.
Porque se lixam para os escândalos, ao contrário dos normais, que prezam pela
discrição, pela elegância, pelo equilíbrio. O que este marido descobriu quando
adotou a solução que descrevi? Que até os loucos têm consciência. E que esta os
controla muito mais que qualquer pressão, discurso ou falatório. Porque a
consciência vem de fábrica.
A questão que se coloca é simples e direta: como se deve educar os
filhos e os cidadãos? Ora, cada um tem sua receita, naturalmente, e paladar não
se discute. Falar da educação dos próprios filhos já não é uma tarefa fácil, o
que dirá dos filhos dos outros. A receita que aprecio, particularmente, não tem
segredo. Vem de longe, do tempo em que se tentava criar adultos. Coisa meio
fora de moda e de implementação cada vez mais difícil com a geração Peter Pan.
Há entre os judeus uma celebração que admiro, um ritual de
passagem chamado Bar Mitzvá. Trata-se de uma cerimônia que insere meninos
judeus no mundo dos adultos e os torna responsáveis por seus atos. O detalhe
crucial é que tal evento se dá quando os meninos completam treze anos. Neste
momento lêem a Torá – o Pentateuco para os cristãos,- e seus pais não respondem
mais pelos seus atos. O momento é festivo e se o ambiente permite cada menino é
conduzido numa cadeira na cerimônia do mazal-tov, algo entre o boa sorte e o
parabéns. Em nosso universo os jovens em geral aguardam com grande ansiedade
seus dezoito anos, quando então poderão obter a carteira de motorista e entrar
em sessões de cinema sem restrições etárias. Ou seja, aos dezoito conquistam
direitos sem que a eles se imponham obrigações. Passam então a sonhar com um
carro, que lhes trará a almejada liberdade.
Assim, enquanto nossos jovens aos dezoito anos andam às voltas com
futilidades, os meninos judeus aos treze conquistam o direito de ler a Torá e
assumem sobre seus ombros a responsabilidade ética e religiosa dos adultos.
Impossível incutir numa cultura, de repente, as qualidades de outra e
naturalmente não estamos a invejar os atributos dos meninos judeus, senão a
admirar uma faceta desta cultura que desde cedo procura forjar adultos.
A infantilização de nossos jovens é tão marcante que o processo
vocacional é cada vez mais tardio. Muitos deles, talvez a maioria, chegam nos
dezessete ou dezoito anos sem saber o que desejam ser. Mas sabem muito bem o
que desejam ter. Para estes jovens os fins não justificam os meios. Os meios
sequer existem. Este desarranjo recebe contornos definitivos com a patética
cumplicidade dos pais - mais os remediados que os pobres,- que de alguma forma
incentivam este mundo dos nefelibatas. Na minha juventude – e não faz tanto
tempo assim,- amigos e colegas também tinham a ânsia da independência, esta
sede saudável de andar com as próprias pernas, ainda que puxando o arado dos
sacrifícios cotidianos. Queríamos ajudar nossos pais, que até então puxavam
solitários a carreta em que permanecíamos sentados. Não precisamos nos
aculturar mas o espírito do Bar Mitzvá faria muito bem aos que querem o fruto
sem o caroço.
J. B. Teixeira |
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