Indagado
certa feita sobre a extensão de seu livro “Viva
o povo brasileiro”, cuja espessura mostra que não pecou pela pressa, João
Ubaldo revelou que seu pai dizia não confiar em livros que não ficassem em pé
na prateleira. Pois eis que acabo de concluir quase simultaneamente a leitura
de duas obras que não passariam pelo crivo paternalubaldense: “A origem da imoralidade no Brasil”, de
Abelardo Romero, e “Os bestializados”, de José Murilo de Carvalho. A primeira
atrai de pronto, a sugerir que tem a resposta para os nossos enigmas. A segunda
tem o dom de batizar todos os apalermados que apenas observam os preparativos
de seus carrascos. Que lhes passam a grossa corda da carestia pelo pescoço, ou
ensebam a lâmina da guilhotina que lhes corta a liberdade e a participação numa
república que não merece sequer o nome.
Quando
estava nos capítulos finais recebi a visita de um amigo de longa data,
acompanhado de seu filho, hoje com seus vinte e tantos anos, que não via desde
menino. Sem perceber o tom de amargura que imprimia às palavras, desandei a
falar de nossos descaminhos, da situação de nosso povo, vilipendiado pelos que
juram protegê-lo. Sejam os da direita, sejam os da esquerda, tanto faz. Hipocrisia
das hipocrisias, o povo é há muito traído e entregue a si mesmo, à sua baixa
autoestima e despreparo. Depois de dedicar aos próceres do país um palavreado
impublicável, me dei conta de que destruía a golpes de marreta a esperança de
um Brasil melhor e então ensarilhei as armas. Não tinha o direito de transmitir
a um jovem o pessimismo do qual não se pode furtar alguém que já viu um pouco
de tudo da nítida decadência brasileira. Como sair disto?
O
que poderia tirar o povo de sua letargia? Um grande aprendizado de participação
popular, de respeito institucional e uma priorização absoluta da educação, para
que em poucas gerações dobrássemos o Cabo das Tormentas de nossas misérias
sociais. Mas não é o que temos feito. Não faz muito construímos estádios de
futebol caríssimos e nos empenhamos para concluir uma vila olímpica enquanto
nossas escolas seguem precárias e nossos professores desmotivados. Se já
estamos defasados em relação à vanguarda mundial, agora, o que dirá em vinte
anos?
Dias
atrás assisti uma reportagem que versava sobre a procura de carreiras públicas,
sobretudo pela estabilidade que elas traduzem. A repórter, num rasgo de
sinceridade opiniática, ela própria distante de tal benefício, exaltava a
virtude maior da função pública: não importa se a economia vai bem ou mal, se
as vendas estão boas ou péssimas, o salário está garantido. É a mais pura
verdade, como também é a admissão de que a borrasca não atinge os cidadãos por
igual. Romero relata em seu livro que na transição golpista da monarquia para a
república uma coisa permaneceu impávida: a obsessão por cargos públicos.
Pudera.
Há
muito tenho a convicção de que vivemos num estado fascista, com democracia
meramente formal, com um crescente e cada vez mais inútil aparato de repressão.
Segundo Romero, nosso povo já nasceu sem liberdade e “salvo alguns casos e exemplos excepcionais, não lhe sente a falta, já
que sempre gozou, como sucedâneo ou recompensa, da mais ampla e irrestrita licença
para manifestar e satisfazer os instintos primários e desprezar os valores
intelectuais e morais, não ocultando sua admiração pelos desonestos e os tolos.
Somos assim porque assim nos fizeram a falta de liberdade, o excesso de
licenciosidade e a educação do medo”.
Nosso
povo original, os brasis, foi dizimado sob a acusação de que era selvagem,
antropófago. Era preciso justificar sua escravização e - para quem imagina que
só os portugueses os maltrataram,- Romero informa que numa carta dirigida a
Calvino, em 1557, o huguenote Villegagnon afirma que “os silvícolas não tinham religião nem honestidade, considerando-os animais
de rosto humano”. O exemplo não serve para escrachar calvinistas, apenas ajuda
a entender que a história tem seu andar e o que hoje condenamos, pode um dia
ter sido normal.
Como
sair da condição de colônia e buscar um lugar ao sol entre as grandes nações? Se
nos enxergarmos como os silvícolas de hoje, pode ser que reescrevamos nossa
história. Mas isto não é fácil, nem provável, porque nossa cultura é
antropofágica e enquanto nos devoramos, o país é transformado em refém dos
interesses internacionais. Sei não. Assim como se adota refeições leves à noite
para prevenir pesadelos, acho que preciso ler coisas mais enlevadas, para não
cair no desânimo que sempre combati. Porque para digerir nossos desmandos é
preciso ter estômago de avestruz. E uma fé invencível para suportar tanta
desordem moral.
J. B. Teixeira |
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