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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

A Origem

Indagado certa feita sobre a extensão de seu livro “Viva o povo brasileiro”, cuja espessura mostra que não pecou pela pressa, João Ubaldo revelou que seu pai dizia não confiar em livros que não ficassem em pé na prateleira. Pois eis que acabo de concluir quase simultaneamente a leitura de duas obras que não passariam pelo crivo paternalubaldense: “A origem da imoralidade no Brasil”, de Abelardo Romero, e “Os bestializados”, de José Murilo de Carvalho. A primeira atrai de pronto, a sugerir que tem a resposta para os nossos enigmas. A segunda tem o dom de batizar todos os apalermados que apenas observam os preparativos de seus carrascos. Que lhes passam a grossa corda da carestia pelo pescoço, ou ensebam a lâmina da guilhotina que lhes corta a liberdade e a participação numa república que não merece sequer o nome.

Quando estava nos capítulos finais recebi a visita de um amigo de longa data, acompanhado de seu filho, hoje com seus vinte e tantos anos, que não via desde menino. Sem perceber o tom de amargura que imprimia às palavras, desandei a falar de nossos descaminhos, da situação de nosso povo, vilipendiado pelos que juram protegê-lo. Sejam os da direita, sejam os da esquerda, tanto faz. Hipocrisia das hipocrisias, o povo é há muito traído e entregue a si mesmo, à sua baixa autoestima e despreparo. Depois de dedicar aos próceres do país um palavreado impublicável, me dei conta de que destruía a golpes de marreta a esperança de um Brasil melhor e então ensarilhei as armas. Não tinha o direito de transmitir a um jovem o pessimismo do qual não se pode furtar alguém que já viu um pouco de tudo da nítida decadência brasileira. Como sair disto?

O que poderia tirar o povo de sua letargia? Um grande aprendizado de participação popular, de respeito institucional e uma priorização absoluta da educação, para que em poucas gerações dobrássemos o Cabo das Tormentas de nossas misérias sociais. Mas não é o que temos feito. Não faz muito construímos estádios de futebol caríssimos e nos empenhamos para concluir uma vila olímpica enquanto nossas escolas seguem precárias e nossos professores desmotivados. Se já estamos defasados em relação à vanguarda mundial, agora, o que dirá em vinte anos?

Dias atrás assisti uma reportagem que versava sobre a procura de carreiras públicas, sobretudo pela estabilidade que elas traduzem. A repórter, num rasgo de sinceridade opiniática, ela própria distante de tal benefício, exaltava a virtude maior da função pública: não importa se a economia vai bem ou mal, se as vendas estão boas ou péssimas, o salário está garantido. É a mais pura verdade, como também é a admissão de que a borrasca não atinge os cidadãos por igual. Romero relata em seu livro que na transição golpista da monarquia para a república uma coisa permaneceu impávida: a obsessão por cargos públicos. Pudera.

Há muito tenho a convicção de que vivemos num estado fascista, com democracia meramente formal, com um crescente e cada vez mais inútil aparato de repressão. Segundo Romero, nosso povo já nasceu sem liberdade e “salvo alguns casos e exemplos excepcionais, não lhe sente a falta, já que sempre gozou, como sucedâneo ou recompensa, da mais ampla e irrestrita licença para manifestar e satisfazer os instintos primários e desprezar os valores intelectuais e morais, não ocultando sua admiração pelos desonestos e os tolos. Somos assim porque assim nos fizeram a falta de liberdade, o excesso de licenciosidade e a educação do medo”.

Nosso povo original, os brasis, foi dizimado sob a acusação de que era selvagem, antropófago. Era preciso justificar sua escravização e - para quem imagina que só os portugueses os maltrataram,- Romero informa que numa carta dirigida a Calvino, em 1557, o huguenote Villegagnon afirma que “os silvícolas não tinham religião nem honestidade, considerando-os animais de rosto humano”. O exemplo não serve para escrachar calvinistas, apenas ajuda a entender que a história tem seu andar e o que hoje condenamos, pode um dia ter sido normal.

Como sair da condição de colônia e buscar um lugar ao sol entre as grandes nações? Se nos enxergarmos como os silvícolas de hoje, pode ser que reescrevamos nossa história. Mas isto não é fácil, nem provável, porque nossa cultura é antropofágica e enquanto nos devoramos, o país é transformado em refém dos interesses internacionais. Sei não. Assim como se adota refeições leves à noite para prevenir pesadelos, acho que preciso ler coisas mais enlevadas, para não cair no desânimo que sempre combati. Porque para digerir nossos desmandos é preciso ter estômago de avestruz. E uma fé invencível para suportar tanta desordem moral.

J. B. Teixeira



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