... eis o pó levantado; estes são os vivos.
Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos”. A reflexão, sublime, é
do quiçá inigualável Padre Antônio Vieira, o lisboeta que veio ainda menino
para o Brasil, consagrou-se à vida religiosa como jesuíta e encheu páginas da
humanidade com poesia e sabedoria. Um dos prazeres que tivemos na encantadora
Salvador foi visitar ambientes que Vieira pisou, como um mosteiro na parte alta
da cidade. Nos dez anos de sua primeira estadia na Europa, como sacerdote, foi
eleito pregador da corte de D.João IV, que o prestigiou e protegeu. Depois,
Vieira voltaria ao Brasil, onde pregou com o vigor de sua coragem e o brilho de
sua inteligência contra a escravidão de negros e índios. Granjeou, como é de se
imaginar, feroz oposição do status quo
da aristocracia agrária, sabidamente escravagista.
Tendo como razão
primeira sua tese sobre o “Quinto Império
Universal”, considerada herética e messiânica, Vieira também sofreria, a
despeito de seu prestígio e fulgor, os rigores da Inquisição, sendo retido em
Coimbra numa casa religiosa de repouso, quando aproximava-se dos sessenta anos.
Sua defesa, segundo os estudiosos, foi eloquente, erudita, com rica dialética.
Deu-se porém por vencido quando soube que o Papa Clemente X manifestara que sua
doutrina continha confusão da fé. Foi proibido de escrever e pregar, mas não
por muito tempo. Cerca de três anos depois de sua detenção seria perdoado das
penas impostas e permaneceria alguns anos em Roma, emprestando aos púlpitos da
cidade eterna o melhor de seu talento e vocação.
Retornando ao
Brasil, onde viveria ainda cerca de quinze anos, empenhou-se na publicação de
Sermões e manteve ativa redação de cartas, numa das quais revela a alegria de
sua atividade missionária: “Ando vestido
de um pano grosseiro cá da terra, mais pesado que forte; como farinha de pau,
durmo pouco, trabalho de pela manhã à noite ...”. Teve o Brasil, portanto,
a sorte de contar por longos anos com um dos grandes pregadores do segundo
milênio da Igreja, cuja memória é insuficientemente cultuada. Seria porque se manteve
fiel, a despeito de deslizes teológicos que possa ter cometido e de injustiças
que possa ter sofrido? Creio que os que perseguem a Igreja e os jesuítas, em
particular, teriam exultado se Vieira houvesse abjurado ...
Como disse Alice von Hildebrand, as críticas fáceis aos religiosos
são sempre dirigidas aos que traíram princípios, que não passam de minoria.
Assim como há péssimos pais, maus médicos, advogados canalhas e jornalistas
vendilhões, há homens que não fizeram jus à veste sacerdotal. Que tal falarmos
dos demais, os que deram bons exemplos? Que tal falarmos dos santos?
Comecei a
engendrar este texto quando recebi pela rede social uma baboseira a respeito do
que deve fazer um sexagenário, com recomendações que vão do mais reles egoísmo
aos conselhos na linha hedonista. Me pareceu mais um manual prático para os que
acumularam fortuna - que sabem não usufruirão até o último centavo,- e ainda
não encontraram destino para a mesma, como se houvessem de sofrer no após morte
a dor pela dissipação do tanto que amealharam, por vezes à custa de usura e
nenhuma caridade. É claro que o “manual”
não se dirige à grande maioria, que pena seus tostões poucos e sequer sabe se
terá o que comer amanhã.
Recém
sexagenário, com direito a furar fila em bancos, não pagar pelo transporte
público e contar com lugares reservados de estacionamento – privilégios aliás
miseráveis diante das dificuldades que o envelhecer trará,- não seria capaz de
redigir um manual que faça contraponto, até porque os ensinamentos cristãos não
precisam de paródia.
Se a morte virá
como um ladrão, oculto e de noite, mais convém a cada um que procure ajustar
suas contas, viver em harmonia, colocando-se mais a serviço dos necessitados,
figurem eles entre os próximos ou façam parte da imensa legião dos que sequer
conhecemos. É claro que desejo aos mais velhos um final digno e feliz, tanto
quanto os achaques o permitam, mas desencorajo qualquer conselho à velhice que
não esteja alicerçado na fé e no bem querer.
A propósito, Vieira concluiu a carta acima aludida informando que
“ainda que com grandes imperfeições,
nenhuma coisa faço que não seja com Deus, por Deus e para Deus, e para estar na
bem-aventurança só me resta vê-Lo ...”. Os exemplos! Por que não cultuar os
exemplos?
J. B. Teixeira |
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