O sobrinho do "Papa Bom" compartilha lembranças de família e testemunhos sobre o tio que será canonizado em 27 de Abril
Cidade do Vaticano, 22 de Abril de 2014 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio
Marco Roncalli era criança quando, em sua casa, já se
respirava o “perfume de santidade” do tio sacerdote, Angelo Giuseppe,
futuro papa João XXIII.
O perfume ficou impresso na sua alma e marcou toda a sua vida. Ele
acabou dedicando 30 anos a estudar apaixonadamente a grande figura desse
pontífice revolucionário, que, no próximo dia 27 de Abril, será elevado
aos altares junto com João Paulo II.
Hoje, Marco Roncalli, presidente da Fundação Papa João XXIII, é um
dos maiores especialistas do mundo no pontificado do "Papa Bom". ZENIT
foi entrevistá-lo.
***
O que significa para você e para a sua família ter um santo em casa?
Marco Roncalli: É um momento de alegria compartilhada, em família, na
paróquia, na diocese, mas também na comunidade civil. É um convite a
uma responsabilidade maior. Mas isto vale não só para mim ou para a
minha família. O Santo, como dizia um grande jesuíta, Xavier
Léon-Dufour, é antes de tudo um chamamento e uma pergunta: "O santo se
torna palavra de Deus. É um êxito de Deus. Deus conseguiu, com a terra
de que somos feitos, plasmar um ser em que a graça venceu a força da
natureza"... Acho que essa frase pode se aplicar muito bem a João
XXIIII.
O Papa Bom foi chamado de papa de transição; depois, de papa
revolucionário, que abriu as portas da Igreja para o Concílio. Agora,
ele é um papa santo. O que mais temos que conhecer sobre João XXIII?
Marco Roncalli: Há uma complexidade por trás da aparente simplicidade
dele. Não se conhece suficientemente a sua cultura, o seu conhecimento
da história, não só da Igreja. Não se conhecem muitos gestos de
solidariedade oculta. Não se conhece totalmente a consciência e a
coragem com que ele assumiu decisões importantes, por causa das quais
ele foi acusado de ingenuidade. Há períodos da sua vida que temos que
aprofundar, como os de jovem seminarista e sacerdote. Ainda precisam ser
publicados alguns cadernos sobre os estudos juvenis dele, sobre o
interesse, por exemplo, no americanismo. Ou algumas cartas de grande
importância trocadas com amigos como o cardeal Gustavo Testa, e as
homilias que remontam à Primeira Guerra Mundial. Mas já desfrutamos de
um grande número de fontes. De nenhum outro papa temos um "Diário da
alma", diários de quase toda uma vida. E há numerosas cartas, homilias,
notas de todo tipo. Eu posso dizer, com certa segurança, que as
contínuas publicações de material inédito dão mais plenitude a uma
parábola humana e espiritual vivida com fé sólida em Deus e confiança
natural nos homens.
Você dedicou muitos escritos ao seu tio. Em termos pessoais, o
que você descobriu? Por exemplo, você publicou a correspondência entre
Roncalli e Montini...
Marco Roncalli: São cartas de fé e de amizade, mas há também outras
cartas como a de Schuster ou as cartas trocadas com dom Giuseppe
De Luca. Os tons são diferentes, mas Angelo Giuseppe Roncalli foi
realmente o homem do encontro: com Deus e com as pessoas.
Para você, como historiador da Igreja, qual é o momento atual da Igreja? Qual é a herança actual do pontificado de João XXIII?
Marco Roncalli: Acho que estamos vivendo uma segunda primavera
conciliar. Como se Deus tivesse nos dado o papa que queria e de que
precisávamos... Sem esquecer que a renúncia de Bento XVI permitiu o que
temos diante dos olhos: a resposta a uma vasta necessidade de
misericórdia, que é uma palavra-chave deste pontificado. Um pontificado
pastoral, mas, como no caso de João XXIII, menos simples do que parece. É
um pontificado com o apoio de uma robusta bagagem cultural, do
conhecimento da história e de muitos homens encontrados longe de Roma.
Para não falar da cultura espiritual que inunda o papa Francisco,
precisamente como a do papa João.
Muitos comparam Francisco com João XXIII: estilo de
comunicação, atitude com as pessoas, ternura... Você vê essa relação
entre os dois papas?
Marco Roncalli: Sim, vejo uma "união" bastante evidente. E também foi
a primeira impressão que eu tive diante da "surpresa Bergoglio". Há
traços comuns na serenidade, no amor pela verdade e pela caridade, pela
pobreza em sentido franciscano e no remédio da misericórdia. E também no optimismo cristão, na alegria do encontro contínuo com Deus e com todos
os homens, sempre com grande respeito.
A família era consciente da santidade de Roncalli?
Marco Roncalli: Eu escutava em casa, com frequência, de quem esteve
realmente perto dele, muitos testemunhos da bondade, da caridade
silenciosa, da contínua confiança em Deus. Quando eu era pequeno, fazia
companhia ao meu avô Giuseppe, o irmão mais jovem do papa, que ficou
viúvo muito jovem. À noite, ele se ajoelhava no genuflexório que tinha
ao lado da cama. E depois, quando deitava, falava muitas vezes do irmão
papa, de como tinham crescido, dos seus encontros antes e depois da
eleição... O meu pai também conta muitas histórias. Meu pai o via muito
quando estava em Veneza, porque fez o serviço militar lá. Eles jantavam
juntos e o meu pai fazia algumas pequenas tarefas para ele. Roncalli
vivia no patriarcado, com grande sobriedade. Na maioria das histórias,
era fácil conhecer o papa João e o seu desejo de santidade. Sempre ouvi
falar dele como uma pessoa verdadeira, um "papa de carne e osso", como
dizia Mazzolari, e gostaria que ele fosse lembrado assim. Não é boa,
para nenhum papa, a mitificação, a "papolatria". Acho que as
imperfeições podem fazer de João XXIII uma pessoa como todas as outras.
Você acha que o seu tio chegou a pensar que seria elevado aos altares?
Marco Roncalli: Ele mesmo, ainda como sacerdote em Bergamo, escrevia
que queria buscar "o substancial, não o acidental", e anotava frases
como "ser santo deve ser a minha contínua preocupação, serena e
tranquila, não pesada e tirânica". Preocupação de um homem vivido,
"sempre com Deus e com as coisas de Deus", e adesão completa à Palavra.
Preocupação de um pontífice que, meditando sobre o elogio do Breviário
Romano a Santo Eugénio Papa, ("foi benévolo, manso e humilde e, o que é
mais importante, distinto pela santidade de vida"), escreveu: "Não seria
bonito chegar pelo menos até ali?".
Por que um processo de canonização tão lento e depois tão repentino, sem nem sequer esperar um milagre?
Marco Roncalli: É verdade que não foi exigido o segundo milagre. O
cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos,
disse que não era uma questão de privilégios ou excepção, mas que o papa
Francisco só quis reduzir os tempos para dar à Igreja inteira a grande
oportunidade de celebrar a canonização de dois papas santos: João XXIII,
o iniciador do Concílio Vaticano II, e João Paulo II, o realizador dos
fermentos pastorais, espirituais e doutrinais dos documentos
conciliares. A vontade do papa é clara. São duas personalidades bem
diferentes, com histórias e características diferentes, mas há traços
que os unem. Foram dois homens capazes de assumir grandes
responsabilidades, pessoais e universais, que marcaram a história.
(22 de Abril de 2014) © Innovative Media Inc.
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