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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Carta de um sacerdote católico ao New York Times

Querido irmão jornalista


Sou um simples sacerdote católico. Sinto-me feliz e orgulhoso de minha vocação. Faz vinte anos que vivo em Angola como missionário.

Vejo em muitos meios de comunicação, sobretudo em vosso jornal a ampliação do tema, de forma maldosa, investigando em detalhes a vida de algum sacerdote pedófilo. Assim, aparece um de uma cidade do USA, na década de 70, outro na Austrália dos anos 80 e assim pela frente, outros casos recentes... Certamente todos condenáveis! Existem apresentações jornalísticas ponderadas e equilibradas, outras amplificadas, cheia de preconceitos e até ódio.

Sinto uma grande dor pelo profundo mal que pessoas, que deveriam ser sinais do amor de Deus, sejam um punhal na vida de inocentes. Não há palavras que justifiquem tais atos. Não há dúvida que a Igreja não possa estar, senão do lado dos frágeis, dos mais indefesos. Portanto, todas as medidas que sejam tomadas para a proteção, prevenção da dignidade das crianças, será sempre uma prioridade absoluta.

Mas, é curiosa a pouca notícia e desinteresse por milhares de sacerdotes que se dedicam por milhares de crianças, pelos adolescentes e pelos mais desfavorecidos nos quatro cantos do mundo! Penso que para vosso jornal não interessa que eu já tive que transportar, por estradas minadas no ano de 2002, a muitas crianças desnutridas desde Cangumbe a Lwena (Angola), pois nem o governo se dispunha a fazê-lo e as ONGs não estavam autorizadas a prestar socorro; que já tive que enterrar dezenas de pequenos mortos entre as vítimas da guerra e também os que haviam retornado; que já havíamos salvado a vida de milhares de pessoas no México diante do único posto médico em 90.000 Km2, assim como a distribuição de alimentos e sementes. Que havíamos dado a oportunidade de educação nestes 10 anos e escolas a mais de 110.000 crianças.

Não é de interesse que com outros sacerdotes tenhamos que socorrer a crise humanitária de cerca de 15.000 pessoas nos acampamentos da guerrilha, depois de sua rendição, porque não chegavam os alimentos do governo e da ONU. Não é noticia que um sacerdote de 75 anos, o Pe. Roberto, durante as noites percorra as ruas da cidade de Luanda curando os homens de rua, levando-os a uma casa de acolhida, para que se desintoxiquem das drogas, que alfabetizem centenas de presos; que outros sacerdotes, como Pe. Stefano tenham casas de passagem para os jovens que são golpeados, maltratados e até violentados e buscam socorro.

Tampouco que Frei Maiato com seus 80 anos, vá de casa em casa confortando os doentes e desesperados. Não é noticia que mais de 60.000 dos 400.000 sacerdotes e religiosos tenham deixado sua terra e sua família para servir a seus irmãos em um leprosário, em hospitais, campos de refugiados, orfanatos para crianças viciadas ou órfãos de pais que faleceram com AIDS, em escolas para os mais pobres, em centros de formação profissional, em centros de atendimento a seropositivos... ou sobretudo, em paróquias e missões dando motivações para as pessoas viver e amar.

Não é noticia que meu amigo, o Pe. Marcos Aurélio, para salvar alguns jovens durante a guerra em Angola, os tenha transportado de Kalulo a Dondo e voltando a sua missão tenha sido metralhado no caminho; que o irmão Francisco, com cinco senhoras catequistas, por ir ajudar nas áreas rurais mais distantes tenham sido mortos em um acidente na rua; que dezenas de missionários em Angola tenham morrido por falta de socorro, por uma simples malária; que outros tenham sido jogados para o alto por causa de uma mina quando visitavam seus parentes. No cemitério de Kalulo estão os túmulos dos primeiros sacerdotes que chegaram nesta região... Nenhum tem mais de 40 anos.

Não é notícia acompanhar a vida de um Sacerdote “normal” em seu dia a dia, em suas dificuldades e alegrias, consumindo sem alarde sua vida em favor da comunidade a que serve.

A verdade é que não procuramos ser noticia, apenas e simplesmente levar a Boa Noticia, essa noticia que sem barulho começou na noite de Páscoa.
Faz mais barulho uma árvore que cai do que um bosque que cresce.

Não pretendo fazer uma apologia da Igreja e dos sacerdotes. O sacerdote não é nem um herói nem um neurótico. É um simples homem, que com sua humanidade busca seguir Jesus e servir seus irmãos. Há muitas misérias, pobrezas e fragilidades como em cada ser humano; e também beleza e bondade como em cada criatura...

Insistir de forma obcecada e perseguidora em um tema perdendo a visão do conjunto cria verdadeiramente caricaturas ofensivas do sacerdócio católico na qual me sinto ofendido.

Só lhe peço amigo jornalista, busque a Verdade, o Bem e a Beleza. Isso o fará nobre em sua profissão.

Em Cristo

Pe. Martín Lasarte sdb
“Meu passado Senhor, o confio a tua Misericórdia; meu presente a teu Amor; meu futuro a tua Providencia”.



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