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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Sobre a alma


(Tudo era simples no tempo em que, menino, folheava em casa de minha madrinha, que com tanta doçura e serena autoridade dirigia a catequese paroquial, uma enorme bíblia ilustrada em que as almas, ou a alma das almas, eram representadas em três andares diferentes. As bem - aventuradas sorriam, diáfanas, confundindo-se com as nuvens que lhe serviam de pedestal, viradas para um Deus-Pai de robusta cabeleira e barba espessa que presidia com bonomia à corte eterna. Em plano intermédio, cozendo em forno brando, erguiam-se os condenados ao estágio no Purgatório, almas que vim encontrar mais tarde num dos mistérios do terço, em que recordávamos «especialmente as mais abandonadas». Era este o local que, assim me explicaram, me estava destinado, uma espécie de inevitável recruta, garantida pela confissão vigilante dos pecados – e a mais tranquila era a dos padres capuchinhos espanhóis, que não percebiam o murmúrio das nossas confidências e mostravam total desinteresse pelo número ou qualidade das faltas. Por essa altura me fora comunicada a importância de manter a alma pura, ou seja, de um branco imaculado, impossivelmente transparente, imagem que tanto torturou a minha adolescência.

Pouco me importava então o Inferno, embora a alma aí estivesse submetida a formas horrendas de sofrimento físico (…). A minha catequista não nos soube explicar o que era a luxúria (porque também decerto nunca a experimentara), não nos soube avisar que o Inferno estava, afinal, mesmo ao pé. (…)

Circunstâncias várias fizeram de mim cirurgião do cérebro. A aprendizagem deste mister obrigou-me a estudar conscienciosamente a anatomia e a fisiologia, de tal modo que pudesse reconhecer o que me era permitido invadir e o que deveria restar inviolável. O que não se poderia trespassar era aquilo que, quando perturbado, iria afectar irremediavelmente a unidade das funções do espírito: vigilidade, atenção, memória, emoções e, mais do que tudo isto, algo mais difícil de descrever, um perfume, uma exalação, que conferia à pessoa a sua individualidade própria, talvez a alma como nós a percebíamos. (…)

Logo no início do meu noviciado me apercebi de como era frágil, e paradoxalmente resistente, o tecido que suportava todas estas funções e cedo comecei a entendê-las como a chama de uma vela, que se apaga com um sopro. Como disse alguém, sempre que um homem morre, um universo completo é destruído. E nada foi igual depois disso. (…) 

(…todas as ciências, e não apenas as ciências, mas todo o género de trabalho intelectual, são um exercício para ligar entre si diferentes hierarquias, para ligar a beleza à história, para ligar a história à psicologia humana, a psicologia humana ao trabalho do cérebro, o cérebro ao impulso nervoso, o impulso nervoso à química, e assim por diante, para baixo e para cima, em todas as direcções». Para mim, é da linha que tudo isto une que é cerzido o tecido em que é talhada a alma. E talvez a sua forma não seja afinal diferente da gravura do meu catecismo…).*

*In: UM MODO DE SER, João Lobo Antunes 

Assim reflectia um mestre que acaba de nos deixar, mas entre nós permanecerão a imagem e os ensinamentos de quem muito trabalhou, lutou, sofreu e ensinou.

Na sua inquietude metafísica não cessava de procurar as “coisas do alto”. Que a sua alma serenamente encontre e reconheça as imagens do seu doce catecismo de menino, que nunca o abandonaram nas vicissitudes da vida.

Maria Susana Mexia















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