Poucas semanas depois da retomada de relações, podemos enxergar melhor os factos
Madrid, 28 de Janeiro de 2015 (Zenit.org) Rafael Navarro-Valls
O comunicado simultâneo em que Washington e Havana
restabeleceram relações diplomáticas demonstra três coisas. A primeira é
que Obama está menos inerte do que parecia. A segunda é que a
diplomacia vaticana retoma a sua força. E a terceira é que, com este
surpreendente “degelo invernal”, os Castro acabaram se dando bem.
Escrevi “surpreendente”, mas, na realidade e visto em perspectiva, o
desenlace era previsível. Em 27 de Outubro de 1962, como resultado da
combinação entre pressão e diplomacia secreta, Kennedy aceitou a oferta
de Kruschev: a URSS retiraria seus mísseis de Cuba se os Estados Unidos
prometessem nunca invadir a ilha caribenha. Foi aí que começou uma
situação estranha, parecida com a “drôle de guerre” da Segunda Guerra
Mundial, quando os exércitos francês e alemão, já declaradas as
hostilidades, ficaram se observando de trincheira a trincheira durante
meses, mas sem iniciar as operações bélicas. Entre Cuba e os Estados
Unidos, só que neste caso com a duração de décadas, também houve um
estado de alerta sem hostilidades guerreiras: Washington manteve o seu
bloqueio e Havana vociferou asperamente. Mas o tempo começou a cansar
cubanos e americanos. Não todos os cubanos, já que os exilados em Miami
persistem legitimamente na sua posição hostil ao regime que lhes tirou
propriedades e liberdades. Nem todos os americanos, já que uma boa parte
dos republicanos viu o restabelecimento das relações como “uma
concessão estúpida” (John Boehner), como um erro que estende a mão a “um
regime repressivo” (Jeb Bush) ou como “concessões em troca de nada”
(Marco Rubio).
Uma guerra estranha
Dentro e fora dos Estados Unidos, aberta ou subterraneamente, o fato é
se apostava no fim da luta entre dois boxeadores exaustos. É
sintomático que, em seu discurso, Obama tenha citado o fim de uma
política que foi “um fracasso durante décadas”, ideia que implicitamente
foi ratificada por Raúl Castro ao advogar por um novo clima em que
“devemos aprender a arte de conviver de forma civilizada com as nossas
diferenças”. As reacções internacionais foram, maioritariamente, de
alívio. Para o presidente da Colômbia, a decisão é um “passo
fundamental” que vai repercutir positivamente em todo o hemisfério. Para
a Rússia, “um passo em boa direcção”. Para a Alemanha, “notícias muito
boas em uma época cheia de conflitos”.
A situação criada pela aproximação Cuba-EUA se assemelha de algum
modo à da declaração de Richard Nixon à nação americana em 15 de Julho
de 1971, às 7h30, quando o então presidente anunciou a “normalização das
relações entre a China e os EUA”, seguida de uma viagem presidencial a
Pequim. Quando os republicanos Nixon e Ford deixaram o poder, aquela
“semana que mudou o mundo” terminou com algo menos conhecido, mas
exactamente igual ao que aconteceu agora: o anúncio de 15 de Dezembro de
1978 em que o presidente do Comité Central do Partido Comunista da
China, Jua Kuo-feng, e o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter,
anunciaram simultaneamente o estabelecimento de relações diplomáticas
entre as duas nações a partir de 1° de Janeiro de 1979. Também naquela
ocasião, sectores americanos reagiram duramente, mas, em geral, a
comunidade internacional celebrou o acontecimento.
A diplomacia vaticana
Talvez seja coincidência, mas o dia do desenlace cubano-americano,
para cujo sucesso tanto Obama quanto Castro atribuíram importante papel
ao papa Francisco, caiu na data do 78º aniversário do pontífice. Segundo
a nota vaticana e as afirmações de Castro e Obama, o papa Francisco
tinha escrito aos dois para convidá-los a resolver questões
humanitárias, além de ter acolhido as delegações de ambos os países e
oferecido os seus ofícios em prol do diálogo sobre “temas delicados”.
A nota vaticana ressaltou o desejo de “favorecer o bem-estar dos
cidadãos dos dois países”. O objectivo da diplomacia vaticana, hoje, não é
tanto resolver um problema entre duas ideologias, mas atender os
indivíduos concretos, que, neste caso, são o povo cubano, em sua
situação humana, económica e socialmente complexa. O centro das relações
entre Igreja e Estado são hoje os cidadãos, não os interesses das
cúpulas. Quando Chile e Argentina, por exemplo, aceitaram a arbitragem
de João Paulo II no caso do conflito Beagle, não apenas evitou-se uma
guerra por questão de horas, mas também salvou-se a vida de quase 30.000
pessoas. Quando os Estados Unidos e a França estavam preparados para
uma intervenção na Síria, o papa Francisco enviou uma carta pessoal a
todo o G-20 reunido em Moscovo, dizendo que "todos os governos têm o
dever moral de fazer todo o possível para garantir a assistência
humanitária às pessoas que sofrem devido ao conflito, tanto dentro como
fora das fronteiras do país”. Esta audaz intervenção levou Putin a pedir
aos Estados Unidos uma inspecção e a destruição dos centros sírios de
guerra bacteriológica, evitando um conflito certo.
Os exilados cubanos e muitas pessoas dentro de Cuba não parecem muito
de acordo com esta normalização do problema: vários deles opinam que,
da parte norte-americana, a posição é oportunista, por quer estar
presente quando as mudanças interiores inevitavelmente ocorrerem, e, da
parte cubana, é um modo de dar legitimidade e poder a um regime que, por
sistema, suprime as liberdades democráticas. É por isso que eu
considerei que os Castro são os grandes beneficiados por este degelo de
relações. Pode haver, porém, um efeito colateral na intervenção do papa
no conflito: o de acelerar mais ainda o reconhecimento da liberdade
religiosa pelo regime cubano. É questão de tempo para que as demais
liberdades irrompam.
Uma soma de acontecimentos
De algum modo, algo similar aconteceu no Leste europeu. Os princípios
morais ajudaram decisivamente a derrubar muralhas cujo cimento parecia
feito para durar uma eternidade. Tad Szulc chamou de “último grande
espectáculo político do fim do século XX” o encontro de João Paulo II com
Fidel Castro em 1998. Ele tinha razão, mas só em parte. João Paulo II,
como agora Francisco, teve a virtude de trocar os parâmetros “políticos”
de uma situação por parâmetros “humanos” ou éticos. Talvez, também
nesta ocasião, a intervenção da diplomacia vaticana contribua para
derrubar a última muralha que, no Ocidente, separa um povo inteiro da
liberdade.
O que aconteceu foi a soma de fatos que, pouco a pouco, fizeram
crescer o prestígio da Igreja católica em Cuba. Tudo começou com a
viagem de João Paulo II. A conversa entre ele e Fidel Castro foi
importante: desde então, a Igreja foi conseguindo um claro
reconhecimento como “corpo social” na ilha caribenha. A hierarquia
cubana aceitou a mediação da Igreja em alguns conflitos sociais cubanos
recentes. Francisco continuou este processo. Naturalmente, o que
aconteceu só era possível para as autoridades cubanas enquanto Fidel
estivesse vivo. Depois, a nova era Cuba-EUA teria parecido uma “reforma”
da Revolução. Fidel, em vida, aceitou a mudança, que agora se apresenta
simplesmente como uma “matização” do processo revolucionário.
Parece que Obama conseguiu deixar um legado para a história e para a
sua memória. Seu desafio agora é que o Congresso levante o embargo
contra Cuba.
(28 de Janeiro de 2015) © Innovative Media Inc.
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