O único modo de se defender a vida é, por incrível que pareça, afirmar o primado da verdade sobre ela
Roma, 29 de Maio de 2013
Cada vez fica mais evidente a actual crise das Universidades.
Essa não se refere a factores económicos, nem mesmo ao fato dos jovens
chegarem ao ensino superior com um nível de aprendizagem cada vez mais
baixo, mas sim a uma verdadeira crise de identidade. A pergunta séria,
que muitos querem silenciar, é simplesmente: para que serve uma
Universidade? É interessante a questão sobre o que deveria inspirar uma
Universidade, algo que não é de hoje, pois foi colocada por diversos
pensadores do século passado. Damos uma resposta aqui a partir das
reflexões do filósofo e teólogo alemão Romano Guardini, que se dedicou
ao ensino universitário por mais de 60 anos, desde o início do século XX[i].
Para ele, a Universidade é o lugar por excelência onde se pode
dizer e escutar a verdade. De modo que essa instituição «adoece quando a
verdade deixa de ser o ponto de referência principal do saber
universitário» (pg. 40). Quando Guardini defendeu essa tese, trazia na
memória as experiências sofridas durante a tirania nazista, na qual
muitos intelectuais se comprometeram com uma ideologia que aparentemente
queria aplicar uma verdade, mas que vivia da mentira e da violência.
Para ele, a causa da traição de vários intelectuais daquele período foi a
tese de que a verdade existe para servir à vida. O filosofia vitalista
de F. Nietzsche, de fato, defendia que a verdade nada mais era do que um
conjunto de metáforas, uma invenção dos débeis para dominar os mais
fortes.
Para a dita filosofia a verdade deve servir à vida, à produção, ao
sucesso (também do Estado), em uma palavra, a tudo o que é útil à vida. E
o que seria útil à vida? Isso seria decidido pela vontade mesma. Surgia
assim a tirania da «vontade de poder», uma vontade forte desligada do
compromisso para com a verdade e para com o bem de todos. Nesse
contexto, a Universidade nada mais seria do que uma peça da engrenagem
da máquina estatal para transmitir os “novos valores” ao povo alemão. O
Estado seria o detentor único de uma filosofia superior que afirmaria a
supremacia da vida do novo homem.
Para Guardini, essa doutrina é falsa e destrutiva, e isso pode ser
demonstrado não só filosoficamente, mas também através da história. Pois
o homem vive daquilo que está acima dele. O homem é como uma árvore
invertida, que possui suas raízes no Céu, como bem viu Platão[ii].
A vida não pode ser o valor supremo, pois essa tem em si aspectos
contraditórios. Os animais são governados pelo instinto, mas o homem
pode dizer não a eles. O homem é um ser livre e pode querer inclusive o
que vai contra a sua própria vida própria e a do seu próximo. No ser
humano há não só a vontade de viver, mas também o instinto de morte.
Como poderia, pois, a verdade servir à vida, sendo que essa possui um carácter contraditório?
Historicamente se viu que quando a vida é colocada acima da verdade,
paradoxalmente, surge todo tipo de atrocidade. Quando uma vida ideal – a
ideologia da segurança e do bem-estar a todo custo – é buscada
independentemente da verdade, os homens reais correm o risco de sofrer
todo tipo de brutalidade. A busca por um “super-homem” foi uma ilusão
que causou o extermínio de milhões de seres humanos reais, e deveríamos
aprender algo com a história.
Sendo assim, o único modo de se defender a vida é, por incrível que
pareça, afirmar o primado da verdade sobre ela. Somente em relação à
verdade a vida humana se torna justa e recta. «Acima da vida deve estar
algo que não depende dela, que não a serve, mas que tem em si mesmo uma
excelência: a verdade. Saber isso, descobrir isso em modo sempre novo,
experimentá-lo, anunciá-lo: eis o papel das Universidades. Se isso é
esquecido, a Universidade perde o seu sentido. Torna-se uma escola
profissionalizante entre outras, que possui um significado prático, mas
não um valor espiritualmente essencial» (p. 27).
A Universidade deve servir à busca da verdade por si mesma. A razão
da crise de identidade das Universidades actuais consiste no fato de que
as ciências busquem a verdade, mas culturalmente somos levados a crer
que a verdade não existe. Muitas vezes o dogma da inexistência da
verdade é “ensinado” nas mesmas Universidades, as quais deveriam
alimentar nos alunos o desejo de descobrir e de servir à verdade. Surge
assim uma tensão na comunidade académica: entre os que buscam a verdade
por si mesmo e os que se deixam seduzir pelo cepticismo, o qual se
manifesta em uma destrutiva «vontade de poder».
Certamente, só quando a Universidade busca a verdade por si mesma
pode contribuir para salvaguardar a dignidade inalienável da pessoa
humana e a sua própria identidade. O risco da Universidade é o de
colocar-se ao serviço de algo que seja inferior à verdade mesma: seja ao
Estado, seja aos interesses de mercado. Uma Universidade digna desse
nome deve guiar-se pela vontade sincera de verdade e não pela «vontade
de poder», de sucesso político ou de lucro. Só assim ela continuará
sendo um verdadeiro caminho verso algo de único (uni-versus), a verdade, que é objectiva e a única a garantir realmente a defesa da dignidade da vida humana.
Pe. Anderson Alves, sacerdote da diocese de Petrópolis – Brasil.
Doutorando em Filosofia na Pontificia Università della Santa Croce em
Roma.
[i] R. Guardini, Tre scritti sull’università,
Morcelliana, Brescia 1999. O terceiro texto do livro é uma das últimas
conferências de Guardini e tem o título: “Vontade de poder ou vontade de
verdade? Um interrogativo para a Universidade”.
[ii] Platão, Timeo, 90a. O filósofo francês Rémi
Brague (1947), vencedor do prêmio Ratzinger 2012 retormou recentemente
esse tema platônico, dizendo que o homem tem suas âncoras no céu. Cfr.
R. Brague, Ancore nel cielo. L’infrastruttura metafisica, Vita e Pensiero, Milano 2011.
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