E se melhor o pensou, melhor o fez: naquela sexta-feira, combinou com ele a visita para as quatro da tarde. Um tanto nervosa, por não conhecer ninguém naquela casa, Rita tocou à campainha. Levava uns bombons para oferecer.
Através
de uma amiga comum, Rita conhecera a história de Manel e começara a falar com
ele pelo telefone, quando ele procurava uma cuidadora que o pudesse ajudar.
Com tristeza e espanto, Rita ficara a saber que Manel, vários anos atrás, era finalista da Faculdade, e numa brincadeira de praia com amigos, caíra e fraturara as cervicais, ficando paralisado para sempre. Depois, para cúmulo do seu infortúnio, na sequência das cirurgias necessárias, acabara também por ficar cego…
Naquela tarde, ao ser recebida com muita simpatia pela mãe de Manel e ao entrar na sala, Rita foi encontrar um homem jovem e bem-parecido, numa cadeira de rodas, sorrindo-lhe abertamente com um sorriso de candura e de criança. As mãos cerradas e incapazes de qualquer movimento, os olhos muito abertos como que a querer perscrutar um vazio, e um desejo de falar, com grande esforço articulando as palavras… deram-lhe a entender que a conversa seria difícil. Rita já não era nova e não ouvia bem e por isso ia-se socorrendo de quando em vez, das ajudas da mãe de Manel para o compreender e manter a conversa a três …
Manel,
por momentos, abriu-lhe a alma, quando a mãe saiu da sala, como um neto pequeno
com sua avó em dias de confidência. Ao voltar a entrar na sala com o chá que
Manel pedira a sua mãe, umas chávenas e um prato com fatias de bolo, a mãe
ainda ouviu Manel a dizer ‘ … mas de momento está tudo bem, enquanto Deus nos
der vida e saúde…’!
Nesse momento, levantando os olhos ao céu, com uma expressão de imensa tristeza, a mãe trocou um olhar com Rita e apenas comentou baixinho ‘…saúde? Qual saúde?… já não espero nada…’.
O trágico acidente dera-se 25 anos antes. Desde então a vida daquela família simples que só desejava educar bem os seus dois filhos e vê-los felizes, sofrera enormes transformações e atravessara tempos de grandes provações. O filho mais novo já não estava com eles. Vivia no estrangeiro com a mulher e dois filhos pequenos, os netos que aquele casal tanto desejava ver crescer e de que Manel falava com tanto carinho… mas todos demasiado longe…
A
mãe de Manel, entretanto pediu desculpa e anunciou que teria de sair em breve
porque queria ir à sua Paróquia acompanhar a Via Sacra. Rita despediu-se
também. Agradeceu o lanche que insistentemente lhe queriam oferecer, mas
explicou que estava de partida e também não poderia demorar-se. Abraçou o
Manel, prometeu voltar, despediu-se da cuidadora e o pai ainda veio
apresentar-se e cumprimentá-la. Já perto da porta, a sós com a mãe, Rita
olhou-a com ternura e disse-lhe que muito os admirava… a mãe abraçou-a também,
dizendo:
• ‘Volte, por favor! Sempre que possa! O Manel gosta muito de ter visitas… compreende a nossa preocupação? Meu marido e eu estamos a envelhecer…. Tenho 73 anos, este meu filho Manel tem 46… mas ele vive conformado e com alegria… nunca se queixa! A senhora desculpe, não leve a mal, eu não dizer para ficar mais tempo… mas também vou já sair para a Via-Sacra!’
Ao chegar ao carro, Rita deu consigo a pensar que aquela mãe já não precisava ir à Via-Sacra… naquela casa a Via-Sacra era uma dura realidade, todos os dias… há 25 anos. E chorou com pena. Depois limpou as lágrimas, ligou o carro, pôs-se em andamento e pensou, convicta, que a Páscoa e Ressurreição também aconteceriam para aquela família.
Fátima Fonseca |
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