
Padre Isidro Lamelas ao 7MARGENS (1)
Além de definir o critério para fixar a data da celebração da Páscoa, em Niceia o que estava em causa era “como compaginar a afirmação de um Deus único com a existência de um Filho que também é Deus”. No ano em que as maiores igrejas cristãs celebram todas a Páscoa na mesma data e em que a 20 de maio se completam 1.700 anos sobre o início do primeiro Concílio Ecuménico, o padre Isidro Lamelas, da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos) e especialista em estudos patrísticos, traça ao 7MARGENS o panorama dos antecedentes desse Concílio de Niceia, analisa a importância do Credo ali formulado e comenta a atualidade decisiva dos debates e decisões tomadas no ano de 325. Amanhã publicamos a segunda parte desta extensa entrevista.
7MARGENS – Quando o imperador Constantino convoca o Concílio de Niceia em 325, ele pretende favorecer uma das correntes em confronto nas comunidades cristãs, ou o seu objetivo é o de acabar com as dissensões de modo a garantir o seu lema “um Deus, um Império, um imperador, uma Igreja, uma fé”?
P. ISIDRO LAMELAS – A figura do imperador Constantino é fundamental para percebermos toda a complexidade do Concílio de Niceia. Por volta de 312, Constantino percebe que há um Deus que pode ser muito útil à unidade e à paz interior do Império, que eram as suas grandes preocupações políticas. Mas, pouco depois, apercebe-se que afinal aquele Deus único que ele pensava poder unificar e pacificar o Império, é motivo de muitas batalhas e divisões. Constantino já interviera em 314 no Ocidente por causa das divisões provocadas pelo donatismo. Agora é no Oriente que a discussão teológica salta para a rua, o que não é uma figura de estilo: salta mesmo para a rua, pois naquele tempo a teologia era uma questão pública. E o debate era este: Como é que o Deus único pode ter um filho continuando a ser um só Deus? Para alguns historiadores a questão ficou ligada a um diácono, Ário [256–336], daí falarmos de arianismo.
Na tradição de Alexandria, mesmo que não possamos falar de uma reflexão acabada sobre a Trindade, existe desde cedo uma compreensão plural de Deus: Deus é Trindade – não triteísmo, nem politeísmo –, Deus é uma relação: há um Pai que sempre foi Pai e que, portanto, sempre teve um Filho. Mesmo que não seja uma Trindade explícita, isto está muito claro desde o início do cristianismo. Jesus veio revelar-nos exatamente isso: Deus é pai. A questão agora seria de como compaginar a afirmação de um Deus único (monoteísmo que os cristãos assumiram em continuidade com o judaísmo) com a existência de um Filho que também é Deus.

“Constantino quis intervir numa discussão que envolvia também a data da Páscoa.” Ilustração: Concílio de Niceia (325), ícone representando o Imperador Constantino e vários bispos segurando o Credo Niceno-Constantinopolitano.
7M – É aí que Constantino intervém…
Constantino percebe que os confrontos estão ao rubro e intervém quando vê que a Igreja local de Alexandria já não consegue pôr fim à discussão, que não era só teológica, era também disciplinar: debatia-se a data da celebração da Páscoa e outras questões.
A situação era esta: a Igreja tinha saído de uma das perseguições mais duras que havia sofrido (Diocleciano em 303-304) e agora o perigo de divisão surge de dentro. Falhadas as tentativas de conciliação dos mediadores enviados pelo imperador, este usa a sua autoridade para convocar um concílio universal (por isso se diz ecuménico, por envolver todas as igrejas, e não por corresponder ao conceito atual de dizer respeito a todas as confissões cristãs), de modo a envolver todas as igrejas e pôr, pensava ele, ponto final a essas dissensões.
O que não aconteceu bem assim, como veríamos depois…
7M – O imperador talvez pendesse para o arianismo, na medida em que este defendia um monoteísmo sem sombra de dúvidas?
Sim, Constantino tem uma primeira fase em que está contra Ário, mas depois toma o partido do arianismo, exatamente por causa disso: ele percebe que a afirmação vincada do monoteísmo, que tem como representante um mandatário na terra que não é igual ao Pai, o Logos-Cristo, é mais conforme à visão política do imperador enquanto representante, mediador e executor desse Deus.
7M – E o modelo que o imperador define para o concílio não é estranho aos bispos? Estes não estavam habituados a concílios mais, digamos assim, familiares, distantes do modelo de funcionamento do senado romano que Constantino impõe, ocupando ele o lugar da presidência de honra, definindo o calendário, etc…?
Niceia abre um precedente marcante. Todos os sete concílios seguintes vão ser convocados pelo imperador, mas este foi o primeiro a sê-lo. Até Niceia, quem convocava o concílio era o bispo metropolita, eram concílios locais, ou regionais, por vezes provinciais. Alguns com regras de calendário: de dois em dois anos, ou duas vezes por ano.
Muitos dos bispos que agora se encontram em Niceia nunca tinham participado num concílio assim com tanta gente. Uns chegam ainda com as marcas da perseguição, outros são pobrezinhos, mesmo do ponto de vista intelectual e teológico, e deparam-se com aquele fausto do palácio imperial à beira de um lago [na atual İznik, a cerca de 150 quilómetros de Istambul]… E tudo indica que se fizeram sentir várias sensibilidades: alguns ainda viam uma ameaça na figura do imperador romano – será que nos vai sujeitar a novas provações? –, outros eram reticentes por via do monaquismo emergente – será um bem este envolvimento do poder político nas coisas da Igreja?
Por outro lado, também havia aqueles a quem a memória das perseguições recentes fazia crer que o Reino de Deus tinha finalmente chegado. Eusébio de Cesareia é um destes últimos e chega a dizer algo como isto: “que bem se está neste ‘vale de lágrimas’!” E esta é a grande ambiguidade deste primeiro concílio ecuménico…
O Bispo de Roma não está presente

“Concílio de Niceia: entre mais de 250 participantes, só sete representavam as igrejas do Ocidente” Ilustração: Michael Damaskinos, Concílio de Niceia (1591). Mosteiro de Vronitissiou, hoje integrante da Agia Collection, Heraklion (Grécia) (pormenor)
7M – Porém, todo esse investimento de Constantino para convocar um concílio ecuménico teve pouco efeito no Ocidente: entre os mais de 250 participantes, apenas sete vêm da Igreja do Ocidente, e nenhum deles é o bispo de Roma. No século IV ainda estamos muito longe do primado de Roma?
Isso decorre sobretudo pelo facto de que aquilo que estava em questão – o arianismo – era um debate oriental. Por outro lado, a geografia religiosa-política estava a deslocalizar-se para o Oriente. O Imperador já não vive em Roma, Constantinopla está em construção e Roma, progressivamente, deixa de ser a capital do Império. Estamos a assistir a este processo de crescimento de alguma indiferença entre a Igreja Oriental (depois bizantina) e a Ocidental (latino-romana). Nos concílios seguintes, o bispo de Roma volta a não estar presente.
7M – Quer isso dizer que, antes do século IV, Roma, o primado do bispo de Roma, era mais importante do que depois o foi?
É verdade que o berço do cristianismo é oriental, mas, em termos institucionais, Roma ganhou, logo a partir do século III, uma proeminência, uma importância muito palpável. Na questão pascal [fixação da celebração dominical ao domingo] quem dita as regras já é o bispo de Roma, o Papa Vítor [188?-199?]. O que não quer dizer que as Igrejas de Oriente não digam: “Está bem, mas a nossa tradição é esta e vamos continuar a segui-la…”
Estamos num período em que o pluralismo teológico, litúrgico e até doutrinal é bastante amplo. Havia várias fórmulas de Credo, as famosas regras da fé. Niceia inaugura uma nova era, pois propõe tendencialmente uma unificação, uma uniformização dessas fórmulas e dessas formas de vivência do cristianismo.
A uniformização não decorre apenas da influência crescente do poder político na vida da Igreja. As normas vão sendo cada vez mais uniformizantes, porque a Igreja começa a reunir e a decidir universalmente. Não só sobre o Credo, mas também sobre a data da Páscoa, sobre a forma de celebrar a eucaristia dominical, que vai ganhando pormenores cada vez mais detalhados…
7M – Como se explica que as comunidades cristãs e a religião cristã – uma religião afastada da política pelo princípio “dai a César o que é de César” – tenham, em menos de três séculos, adquirido tanta importância no império e na política imperial?
Em primeiro lugar, o sucesso do cristianismo deve-se ao facto de ser uma religião popular, uma religião que não fazia aceção de pessoas e que era voltada para os fracos, as classes baixas. Não que privilegiasse estas, mas pela primeira vez na bacia do Mediterrâneo, surgia uma religião vinda do Oriente que, tal como hoje, respondia à busca interior, espiritual, pessoal. Isto contrapunha-se à religião do Império que era exterior, composta de rituais públicos e observâncias meramente formais, exteriores. O cristianismo alinhava-se com as religiões, como o culto de Mitra, de Ísis, religiões que vinham do Egito e de outros locais e eram mais iniciáticas, mais experienciais, mais baseadas na vivência, na experiência do mistério. E o sucesso foi estrondoso!
A vitória deve-se à presença das mulheres

Templo de Mitra em Roma (por baixo da Basílica de São Clemente): “as mulheres não entravam, ao contrário do que acontecia nas comunidades cristãs, onde eram a maioria.” Foto: Allie Caulfield / Wikimedia Commons
Há aquela famosa pergunta de von Harnack (1851-1930), um estudioso do século passado: “por que razão venceu o cristianismo e não o culto de Mitra?” A pergunta tem toda a razão de ser porque o culto de Mitra também era muito popular. A Europa está cheia de templos, ou vestígios de templos, do culto de Mitra, e de vez em quando descobre-se mais um – os nossos museus estão cheios desses vestígios. Uma das razões é o facto de que no culto de Mitra as mulheres não entravam. Na igreja, eram a grande maioria. Desde o início, tal como hoje, são as mulheres que marcam a presença em grande número na Igreja.
Outro aspeto é o facto de o cristianismo ser uma religião muito disciplinada, com um grande sentido de pertença, de participação, de importância que dá à comunidade, a um certo igualitarismo, à atenção aos mais pobres. Todos estes aspetos contribuem para a revolução interior que não foi política; foi o tal fermento que leveda a massa, a revolução silenciosa que o cristianismo protagonizou.
Há historiadores que dizem que o cristianismo nascente enfraqueceu o Império, explicação que hoje está posta em causa; mas o que é indiscutível é que o cristianismo foi ocupando o lugar dos políticos na construção de uma unidade imperial. Por alguma razão há investigadores que hoje falam de uma Igreja imperial existente a partir do século IV. Uma Igreja em que os bispos começam a ter papéis políticos muito importantes.
7M – Ao mesmo tempo, nesse processo a organização das comunidades cristãs passa do modelo judaico-neo-testamentário ou do modelo carismático paulino, para um modelo que confere centralidade ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos…
Há quem defenda que a partir de Niceia entramos num ‘cristianismo a duas velocidades’. Até então o cristianismo era combativo devido ao contexto de confronto com o Império e com uma cultura que lhe é adversa, ou que não é conciliável em muitos aspetos da vida pública com a fé cristã, sendo que essa fé também tem uma expressão pública inevitável. Mas, desde o momento da chamada ‘conversão de Constantino’, ou mais exatamente da ‘conversão do Império ao cristianismo’, e vice-versa, do cristianismo ao Império, passamos a ter, já não tanto um cristianismo de convicção, mas um cristianismo de massa, um fenómeno de massas.
Por isso crescem os locais de culto, as basílicas. O cristianismo das domus ecclesia, que se reúne nas casas domésticas ou privadas, passa a reunir-se em grandes assembleias, as chamadas basílicas, grandes edifícios, grandes espaços. A casa, como lugar da celebração eucarística, dá lugar à cidade, à dimensão pública.

“Santo Agostinho queixava-se de, enquanto bispo, estar sempre a atender pessoas com casos e querelas do quotidiano.” Pintura: Sandro Boticelli, Santo Agostinho.
Nesse contexto, o papel do bispo ganha outras dimensões, nomeadamente, por exemplo, como formador. Agora é preciso dar catequese a esta gente que aderiu sem formação. Alarga-se o período do catecumenato, introduz-se toda a disciplina pré-batismal e a Quaresma, como estágio mínimo de 40 dias para preparar aqueles que vão ser batizados, surge nesse contexto. Uma das práticas mais relevantes deste cristianismo a duas velocidades é o facto de muitos ‘convertidos’ não quererem ser batizados, adiarem receber o batismo até o fim da vida. Ou seja, é um tempo em se podia ser cristão, ir à missa, como diríamos hoje, sem compromisso de maior.
Mas na ‘outra velocidade’ há aqueles que continuam a dizer: “não, o cristianismo tem uma dimensão agónica, é uma exigência que obriga a estar alerta, vigilante e a fazer todos os dias escolhas difíceis!” E este entendimento não é válido apenas para os monges que vão para o deserto quase como que denunciando o novo facilitismo de ser cristão, é também muita gente dentro da Igreja comum que aposta nessa exigência de uma formação maior.
Neste novo contexto, o bispo, além do seu papel religioso e eclesiástico, ganha realmente uma dimensão política muito importante. Vai assumir, por exemplo e pela primeira vez, também cargos e funções jurídicas. A chamada audiência episcopal surge no pós-Niceia, no sentido de que as questões religiosas são assuntos a ser tratados com e pelo bispo diretamente, sem intervenção da administração romana. Progressivamente, ao bispo são levadas já não só questões religiosas, mas também conflitos da vida quotidiana: partilhas, disputas de terrenos, etc. Santo Agostinho queixa-se de não ter tempo para outra coisa, pois estava sempre a atender pessoas com casos e querelas deste tipo.
Deus, ou o destino da humanidade?

Isidro Lamelas: “A Trindade não foi inventada em Niceia, pois já antes há tratados sobre a Trindade.” Foto © Jorge Wemans/7MARGENS
7M – Regressando a Niceia: do ponto de vista cristológico quais eram as dissensões que o primeiro Concílio se propunha resolver?
São questões que vêm detrás…
7M – E que ainda hoje têm alguma relevância para a vida das pessoas?…
Há quem diga, quando se olha ou se recordam estas discussões, que são coisas absolutamente inúteis, com pouca atualidade e sem consequências. Mas não é assim. Se deixamos de pensar a vida a partir de Deus, começamos a pensá-la a partir de outras coisas. E as outras coisas podem derivar para idolatrias…
O que eles perceberam, naquelas discussões, foi precisamente que não era de Deus que estavam a falar. Eles (e nós) estavam (estamos) a falar da condição humana e do destino da humanidade. Portanto, tudo o que nós dissermos sobre Deus, acerca de Deus – e não podemos dizer muito, porque Deus não está ao nosso alcance – é sobretudo dito a partir da nossa experiência, da experiência humana. No caso cristão, dizemos Deus a partir de um homem que nos veio falar de Deus, Jesus Cristo, Deus feito homem.
7M – É essa a perspetiva que Niceia acentua…
Exato. É por isso é que em Niceia se diz Deus de Deus, da mesma substância do Pai, estamos sempre a referir o de: Cristo, que é de Deus, que é do Pai. Este é um dos pontos da polémica. Os que abordavam a questão mais em termos filosóficos partiam da questão de Deus: o Deus de Aristóteles, o Deus Uno, o Deus como abstração. E facilmente incorriam em dicotomias e até antinomias, por exemplo: como é que Deus pode ter um filho? Como é que o Deus Único pode ser Trindade? Como conjugar a questão do único e do múltiplo? Essa era uma das dificuldades de Ário e dos seus seguidores.
O que, por exemplo, Santo Atanásio [295-373] propõe e os teólogos que depois vão desenvolver o dogma trinitário dizem, é: “Não, não, nós só podemos falar de Deus a partir daquilo que alguém nos veio dizer ou falar de Deus, que é o Filho que fala do Pai.” E recorrem às afirmações do Evangelho de São João – “Deus nunca ninguém o viu”, “ninguém vai ao Pai senão por Mim, “quem Me vê, vê o Pai” – para, a partir dessas afirmações e da própria revelação cristã, a partir da figura de Cristo, começarem a tentar explicar a relação entre o Pai e o Filho.
Deus tendo um Filho – já tinha dito Orígenes [185-253] – quer dizer que há uma geração: Deus gera um Filho eternamente, portanto antes do tempo, porque em Deus não há tempo, não há ‘antes’ nem ‘depois’. A questão estava mais ou menos resolvida a partir desta intuição de Orígenes e de outros. Antes de Niceia já se tinha desenvolvido uma teologia trinitária, a Trindade não foi inventada em Niceia, pois já antes há tratados sobre a Trindade.
7M – Mas com Niceia surgem outros desafios?
Agora o desafio era explicar a relação entre o Pai e o Filho em termos racionais, em termos até filosóficos. É por isso que pela primeira vez é introduzida num Credo uma categoria filosófica, ousia (substância) e homoousios (da mesma substância), da mesma ousia: “o Filho é da mesma substância do Pai”. O que serve para dizer que Ele é gerado; mas gerado não significa que antes não existiu, ou que existiu um antes em que Ele não era, contrariando, assim, a conclusão de Ário quando afirmava que “se é gerado, houve um tempo em que Ele não existiu”, ou mesmo, segundo o que lhe é atribuído, dizendo, que “Ele foi criado, não gerado, criado a partir do nada, portanto é uma criatura como outra qualquer”. Ora, a Igreja, a fé católica não podia aceitar esta posição de Ário, porque ela contrariava as afirmações do Novo Testamento, porque era contra um Credo que existia desde as primeiras gerações e que era formulado no Credo batismal, nas chamadas regras da fé, etc, etc.
Em Niceia, a questão, portanto, resume-se a isto: como vamos garantir, de forma definitiva, que Ele é igual ao Pai, isto é, que é eterno como o Pai? E é curioso que no Credo de Niceia não se diz que ele é coeterno com o Pai. Tinha de se ir buscar uma categoria filosófica – homoousios (da mesma substância) –, precisamente para refutar os silogismos desses debates que eram muito filosóficos. Foi a solução.
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