
Biógrafo de Francisco ao 7MARGENS
“Tenho visto muita resistência a esta mudança, sobretudo do antigo centro da Igreja – ocidental, europeu e americano”, diz o jornalista britânico Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco. Tendo estado em Lisboa há duas semanas, para apresentar o seu último livro – Em Primeiro Lugar, Pertencer a Deus –, Ivereigh diz que a mudança dinamizada por Francisco é “muito mais evidente e óbvia” nas “igrejas jovens da Ásia, América Latina e África”.
A entrevista foi feita nos dias em que o Papa Francisco dava sinais de melhora do seu estado de saúde, antes do AVC fatal que o levou à morte segunda-feira passada. Por isso, Austen Ivereigh interpretava esses sinais como positivos e como traduzindo o início de uma nova fase do pontificado. Mas também via que as decisões de Francisco de querer ir à praça contactar com as pessoas eram arriscadas: “Esse é o meu temor e o temor dos que amam muito ao Papa: ele tem uma vontade muito forte e às vezes faz coisas que não ajudam a recuperação.” Mas também entendia que seria difícil ser diferente, “porque a continuação do papado não é o objectivo final” de Francisco; antes cumprir a missão que Deus lhe confiou.
Austen Ivereigh antevia já “a possibilidade de perder o Papa” como “uma questão também pessoal”. Depois de o ter visto pessoalmente em Dezembro, pela última vez, sentiu que acabara de visitar um avô que se ama muito e se teme perder. Apesar de publicada depois da morte de Francisco, esta entrevista fica como uma leitura do pontificado, por parte daquele que foi um dos seus mais profundos intérpretes.

Austen Ivereigh em Lisboa, onde veio apresentar o livro Em Primeiro Lugar, Pertencer a Deus. Foto © António Marujo/7MARGENS
7MARGENS – Houve pessoas que já “mataram” o Papa, há pessoas que pensam que ele renunciará ao cargo, outras pessoas pensam que ele irá continuar. Qual é a sua perspectiva para o futuro próximo?
AUSTEN IVEREIGH – É evidente que ele vai continuar e que tem visto a sua recuperação como um sinal divino de que tem mais trabalho a fazer como Papa. Para mim, é um capítulo final inesperado do pontificado, em que o papado vai ser mais limitado fisicamente, mas penso que será muito criativo e muito frutuoso. Há cinco anos, o confinamento da covid, em que o Papa se sentia preso, foi um tempo de bastante frustração para ele, mas também de muita criatividade.
Leio, nas suas mensagens ainda no hospital Gemeli, mas também nos Ângelus destas últimas semanas, uma nova ênfase muito forte na paciência de Deus e na ligação entre a paciência e a esperança, que é o grande tema do Jubileu. Penso que vai ser agora um papado diferente, mas frutuoso de outra maneira.
7M – Quer dizer que, na sua opinião, o Papa continua a ter objetivos e programa claros na sua cabeça?
Ele vê este momento como uma continuação do seu papado e uma nova missão, talvez diferente na sua ênfase, do que foi o pontificado até agora. Os objectivos não são grandes reformas ou grandes mudanças, mas deixar um tempo para que as mudanças se consolidem. Estou a pensar, sobretudo, na extensão do Sínodo, neste período de implementação, que vai ser muito importante para a Igreja.
Não descarto a possibilidade de que ele, no futuro, tenha de renunciar. Ele tem falado dessa possibilidade: se houver uma condição crónica que não lhe permita governar, acho que ele tomaria essa decisão. Mas em nenhum momento, até agora, tem deixado de governar e as mensagens desde o hospital têm enfatizado isso: que está a ler e a assinar documentos, está governando. E enquanto puder governar, continuará a fazê-lo, apesar da sua fragilidade física.
7M – Essa fragilidade, temos visto nas últimas semanas apesar das melhoras, ainda é muito grande. Não há o risco de termos um Papa com uma acção muito semelhante ao que vimos nos últimos anos de João Paulo II, em que ele praticamente já não governava?
Vejo uma diferença muito grande entre os últimos anos do pontificado de João Paulo II, quando ele, de facto, não governava. Era o que os canonistas chamam uma “sede impedida”. De facto, não governava e muitos dos problemas do Vaticano têm a sua raiz nessa época. Esta é a diferença grande: o Papa Francisco tem todas as suas faculdades e essa diferença é fundamental.

O temor de Austen Ivereigh: a vontade muito forte do Papa Francisco levava-o a fazer coisas que não ajudavam a sua recuperação. Foto © António Marujo/7MARGENS
7M – No fundo, confirma o que o médico do Papa disse há dias: a decisão de aparecer na praça de São Pedro na primeira vez foi do próprio Papa; ou seja, ele continua a tomar decisões e a fazer o que entende.
Sim, esse é o meu temor e o temor dos que amam muito ao Papa: ele tem uma vontade muito forte e às vezes faz coisas que não ajudam a recuperação. Acho que é difícil [ser diferente], porque a continuação do papado não é o objectivo final da sua vida: é a missão que Deus lhe confiou. Será, então, uma questão de balancear estas duas coisas.
7M – Já referiu a convocação da Assembleia Eclesial de 2028, que o Papa confirmou. Isso é a afirmação de que ele continua apostado no caminho que ele próprio traçou em relação ao Sínodo sobre a sinodalidade?
A mensagem deste processo anunciado de implementação do sínodo, para os próximos três anos, é para afirmar que o sínodo não é do Papa, é da Igreja. O documento final [da assembleia sinodal], de Outubro do ano passado, foi o fruto de um discernimento em comum de toda a Igreja durante três anos, e deve ser implementado por essa mesma Igreja, não importa quem seja o Papa. Penso no Concílio Vaticano II, que foi Paulo VI que retomou a tarefa de implementar o Concílio, depois da morte de João XXIII.
Francisco sabe que a sua vida é limitada e esta decisão é clara: ninguém pode usar a fragilidade do Papa como desculpa para não implementar o sínodo. Esta é a mensagem desta convocatória.
7M – No livro que é o pretexto para esta vinda a Portugal, Em Primeiro Lugar, Pertencer a Deus, refere o sínodo como o estar à volta de uma mesa comum. O Austen participou na assembleia sinodal…
Participei no sínodo desde o princípio, porque estive envolvido também na síntese nacional de Inglaterra e Gales. Depois, fiz parte da equipa que [redigiu] o documento universal, um resumo dos frutos de todas as sínteses nacionais que formou a base da etapa continental. E, no final, fiz parte das duas assembleias do Sínodo dos Bispos.

O Papa Francisco no encerramento do Sínodo, em Outubro de 2024: a sinodalidade é o objectivo, diz Ivereigh. Foto © Vatican Media.
7M – Essa mesa comum de que fala no livro deu ou está a dar passos na Igreja em todo o mundo? Que balanço faz do caminho percorrido até agora?
O que tenho visto é um caminho de conversão da cultura da Igreja. Há muitas pessoas com expectativas sobre o sínodo. Para mim, a própria sinodalidade é o objectivo, [trata-se de] recuperar esta forma de ser e actuar, esta forma de relacionar-se, de [tomar] decisões baseadas na consulta, na participação, no discernimento.
Esta mudança de cultura que é tão necessária na Igreja – porque estamos a entrar numa nova época, a “tarde do cristianismo” como descreve Tomáš Halík –, esta mudança é necessária para evangelizar o mundo desde um ponto de impotência e não de potência, que seria a grande diferença. Para mim, a sinodalidade é o veículo, o dom do Espírito Santo para ajudar a Igreja a fazer essa conversão e essa mudança. Estou cada vez mais convencido da necessidade deste sínodo.
7M – Mas há resistências?
Tenho visto muita resistência a esta mudança, sobretudo do antigo centro da Igreja – ocidental, europeu e americano. Para a Igreja jovem da Ásia, América Latina e África, ela é muito mais evidente e óbvia, sobretudo a América Latina, desde onde se iniciou este caminho. Mas no centro antigo da Igreja há resistência, porque tem os recursos para manter o sistema atual. Mas é tão evidente que este sistema já não está a funcionar!…
Um bispo alemão, na primeira assembleia do Sínodo, em Setembro de 2023, disse-me que desde que tinha sido nomeado bispo tinha enterrado 300 sacerdotes e tinha ordenado 15. É interessante que um bispo africano, depois disso, falou da sua jovem diocese em crescimento, onde só tem um ou dois sacerdotes para uma área muito grande.
Quer dizer, a participação dos fiéis na vida e missão da Igreja, de todos os batizados, é a grande tarefa agora, outra vez. A sinodalidade é o veículo que nos permite entrar nesse caminho da conversão.
7M – É um processo de mudança de mentalidade e de debate interno, mais do que um processo para chegar a conclusões imediatas…
Exatamente. Por isso é tão difícil, porque a coisa mais difícil de mudar é a mentalidade. Para mim, é a grande realização de Francisco, um Papa muito dinâmico, mas muito paciente. Ele sabe que as mudanças mais importantes são as mudanças da mentalidade, da cultura.
Podem mudar-se as pessoas, podem reformar-se as estruturas, mas se a mentalidade não muda, fica-se na mesma. E tenho visto no Vaticano, nestes últimos 12 anos, uma mudança muito substancial na mentalidade da Cúria. É agora muito mais humilde, de serviço à Igreja, e não de dominação. [O que significa] que é possível que as mentalidades mudem. Vê-se também, a nível da Igreja local e universal, essa mesma mudança através da sinodalidade. Mas estamos no princípio deste caminho, estou cada vez mais consciente disso. Estamos a aprender a fazer isso.
Não surpreende que as pessoas perguntem: o que mudou até agora, depois de três anos, ou o que é que é diferente na Igreja? A resposta é que [ainda] estamos a aprender a fazer isso. Estamos ainda numa Igreja não sinodal, que está a aprender a ser sinodal, mas estamos no início.

Austen Ivereigh: “A crise actual do mundo é, sobretudo, uma crise de pertença.” Foto © António Marujo/7MARGENS
7M – Este livro parte dos Exercícios Espirituais, a proposta do fundador dos jesuítas, Inácio de Loiola. Nele, o Austen propõe alguns pontos para um mapa espiritual. Podemos dizer que a voz do Papa está a fazer falta para orientar os católicos nesse mapa, tendo em conta o momento da história do mundo que estamos a viver, com tantas tensões, tantos conflitos?
De facto, o livro é um retiro de oito dias, cada capítulo tem [esse título]: primeiro dia, segundo dia… São exercícios espirituais com o Papa Francisco, no sentido em que eu uso os retiros que ele dava como jesuíta, combinando esses pontos com o próprio pontificado e os ensinamentos do magistério do Papa, sobretudo na questão ecológica, na questão da migração ou da sinodalidade – todos os grandes temas do pontificado estão no retiro. Para mim, a razão de o ter escrito, é uma forma de [condensar] o pontificado. Muitas pessoas me têm perguntado como podemos entrar no pontificado, como podemos assumir a dinâmica, porque há demasiado para ler. É uma forma de o fazer.
A razão do título, Em Primeiro Lugar, Pertencer a Deus, vem de Gaudete et Exsultate, o seu documento sobre a santidade, de 2018. Quando falei com ele sobre o livro, gostou muito do foco no tema da pertença, porque a crise actual do mundo é, sobretudo, uma crise de pertença.
7M – Em que sentido?
Esquecemos os laços de pertença, de viver com Deus, com a criação e com as pessoas. Pode entender-se o pontificado, de alguma forma, como uma tentativa de recuperar esses laços de pertença a Deus, de reconhecer que tudo é um dom de Deus; mas também de recuperar a nossa relação com a criação, de tal forma que nos consideremos a nós mesmos como parceiros da criação, e não como os que a dominam; e que não somos rivais dos outros membros da família humana, não importa quem sejam. Quer dizer que é um caminho de conversão individual, um caminho para chegar ao reino de Deus.
Pensei no retiro como uma coisa bastante prática, que pode ser usada por uma diocese, por uma paróquia. Saiu em inglês há um ano e tem sido usado com muitos bons frutos. Há uma paróquia que conheço, que usou [o texto] no seu clube do livro durante oito semanas, reunindo em grupo cada semana para falar dos frutos da oração pessoal, usando os exercícios.
7M – Essa tripla pertença que referia relaciona-a também com o que o Papa Francisco propõe de sair de si mesmo. Esse é um dos motes importantes que fica deste pontificado?
Sair de si mesmo é fundamental neste pontificado. Passei bastante tempo como biógrafo, como uma pessoa que tem tentado compreender o pontificado, e tenho regressado muito a essa frase que ele usou no mesmo discurso que deu aos cardeais antes do conclave, em Março de 2013. Sair de si mesmo é a capacidade de transcender as nossas limitações mentais, ideológicas, a nossa forma de pensar, para receber o dom de Deus, que Deus está desejando partilhar connosco, abrindo-nos ao Espírito Santo. É o acto da auto-transcendência, de que falava Santo Agostinho.
E por que é tão importante, nesta época, esta capacidade? Porque precisamente nas épocas turbulentas, de crise, a tendência humana é refugiarmo-nos em nós mesmos, querer voltar para trás, querer encerrarmo-nos em nós mesmos. Esta é a grande tentação da autossuficiência.
7M – Em nós mesmos, no nosso país, no nosso grupo…
Na nossa identidade… Esta é a grande tentação. A proposta de Francisco é exactamente a alternativa a isso.
7M – Como nasceu este livro?
Quando os jesuítas britânicos quiseram que eu [lhes] fizesse [um retiro], eu disse: sou jornalista, sou escritor, não sou pregador de retiros. Sou um leigo inaciano, conheço muito bem os exercícios espirituais, faço todos os anos os oito dias com o meu diretor espiritual, mas não me sentia capaz.
Depois, quando falei com eles, dei-me conta de que não sou eu que estou a dirigir este retiro, é o Papa Francisco. Então, seria semelhante ao meu papel quando escrevi com o Papa o livro Sonhemos Juntos, durante a pandemia. Eu era a pessoa que ajudava a fornecer uma estrutura e a fazer o trabalho necessário de editar um texto claro e acessível. [Pensei] que podia fazer isso e a melhor razão para escrever um livro é se procuras um livro e ninguém o escreveu ainda.
Pensei que seria bom ter um retiro inaciano baseado na sabedoria de Francisco. Procurei, não havia. Depois de fazer o retiro para os jesuítas britânicos, foram eles mesmos que sugeriram que o publicasse. Mas levei muito [tempo ainda] depois do retiro para actualizar e torná-lo relevante para este momento, perante as múltiplas crises que estamos a padecer neste momento.
7M – E para as pessoas em geral, incluindo jornalistas e políticos, este livro significa que é preciso pararmos todos de vez em quando para pensar nas nossas vidas?
Totalmente. Talvez todos os cristãos precisem de voltar, de retornar às fontes da fé e a o modelo de Cristo. Devíamos perguntar sempre se as nossas acções, se as nossas prioridades são as mesmas prioridades de Cristo. Não são, mas a questão é como podemos aproximar-nos mais delas. No centro dos exercícios espirituais está o centrar-nos em Cristo. E para isso, a questão é escolher. É difícil: devemos escolher entre coisas que parecem boas, mas algumas são melhores, precisamente porque são as escolhas de Cristo.
Este é um caminho de conversão pessoal, mas também para a Igreja toda e para as nossas paróquias, para as nossas instituições. É bom fazer este diagnóstico todos os anos, de perguntar-nos onde é que estamos nesse caminho, porque é um caminho constante, é uma dinâmica. Ou estamos a avançar ou estamos a retroceder. Nunca podemos ficar iguais.

Austen Ivereigh cumprimenta o Papa durante a segunda sessão da assembleia geral do sínodo, em Outubro de 2024: “Sou um discípulo de Francisco, e devo-lhe muito.” Foto: Direitos reservados.
O Austen passou muito tempo em Roma, acompanhando o Papa, preparando livros, etc. Nesta situação em que ele esteve mais frágil, como é que sentiu a sua ausência?
Fui para Roma alguns dias depois de o Papa ter sido hospitalizado, pensando que tínhamos chegado ao fim, e queria estar presente por uma mistura de motivos, profissional, mas também pessoal. Lembro-me de fazer uma entrevista com uma rádio em Londres, que me perguntou: “Deve ser difícil para ti, porque és escritor, jornalista, mas também o conheces pessoalmente; como é estar fora do hospital todo o tempo a falar dele?” Eu não consegui responder durante 30 segundos, pareceu um tempo infinito. [O jornalista] enviou-me depois uma mensagem pedindo desculpas, mas eu disse-lhe: não, não, essa era “a” pergunta.
A verdade é que, para mim, o Papa é muito mais que um tema, um sujeito; ele tem sido para mim um pai espiritual, um modelo, talvez o ponto de referência que eu pessoalmente procurava na minha vida. Para mim, a possibilidade de perder o Papa é uma questão também pessoal. A última vez que o vi, em Dezembro, já estava bastante fraco, tinha bronquite, e quando eu saí era como ter visitado um avô que amas muito e temes perder.
No fim, sou um discípulo de Francisco, e devo-lhe muito. Por isso estou tão contente de podermos tê-lo um tempo mais, porque estou seguro de que ele, precisamente nestas situações de fragilidade, tem muito para nos oferecer. Sei isso porque ele teve um período na sua vida que os seus biógrafos chamam o exílio de Córdoba, que foi um tempo muito escuro para ele, mas saiu dessa época uma pessoa muito mais madura, que tinha crescido muito espiritualmente, com muito mais confiança, digamos, na acção de Deus, a paciência. Estou convencido que os frutos desse período vamos viver agora, neste capítulo inesperado do seu pontificado.
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