Invasão da Ucrânia em causa
Um novo começo ou uma partida em falso? Nesta quarta-feira, 31 de Agosto, ao final da tarde, iniciou-se em Karlsruhe (Alemanha) a 11ª assembleia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e o secretário-geral interino da organização, o padre ortodoxo romeno Ioan Sauca quer que ela seja “um novo começo” que traga as “necessárias palavras de esperança para alcançar a reconciliação entre os povos”. Mas o Presidente federal alemão, Frank-Walter Steinmeier, fez no seu discurso de acolhimento aos mais de quatro mil delegados, uma crítica muito violenta das posições da liderança da Igreja Ortodoxa Russa em relação à invasão da Ucrânia. O seu discurso teve uma reacção imediata dos delegados do Patriarcado de Moscovo.
Para o ainda secretário-geral do CMI, esta assembleia, adiada por um ano devido à pandemia e que o 7MARGENS acompanhará presencialmente a partir de segunda-feira, 5, “é de importância semelhante à primeira”, realizada em 1948. “Nessa altura, o mundo estava a emergir do drama de um conflito total e devastador; hoje estamos a viver uma miríade de conflitos, alguns bem conhecidos, outros esquecidos. Por isso falava do necessário “novo começo” para as 352 igrejas-membros do CMI.
Numa conferência de imprensa, o padre Sauca foi questionado sobre o facto de o Conselho ou Mundial ter recusado expulsar a Igreja Ortodoxa Russa, por causa do seu apoio à invasão da Ucrânia: “Recebemos vários pedidos nesse sentido, mas o Comité Central do Conselho Ecuménico reiterou o seu desejo de fazer da nossa estrutura um espaço de diálogo livre, pelo que a expulsão não foi aprovada.”
Sauca esclareceu ainda que se deslocou pessoalmente à Ucrânia para assegurar que haveria representantes das igrejas locais em Karlsruhe, e que defendeu também a presença da delegação russa: “O que importa não é a nossa opinião pessoal, mas que as partes se reúnam. O discurso pode ser alargado a várias outras situações de crise no mundo, desde o Sudão à Palestina e às Coreias, para citar apenas algumas. Nos dias que antecederam o início dos trabalhos, vi os delegados ucranianos e russos comerem juntos à volta da mesma mesa; em privado, o diálogo começou imediatamente.”
O secretário-geral interino do CMI concluiu: “A política e a religião dividem-nos agora, mas continuamos a ser uma plataforma de encontro e este é o primeiro lugar no que acontece para as igrejas russas e ucranianas desde o início da guerra. Vamos dar espaço para o diálogo e ver o que acontece”.
“Ideologia totalitária, disfarçada de teologia”
Mas o Presidente federal alemão foi a Karlsruhe (Oeste da Alemanha, 140 quilómetros a sul de Frankfurt) dizer que nem todos os delegados eram ali bem-vindos: “Os líderes da Igreja Ortodoxa Russa estão actualmente a conduzir os seus membros e toda a sua Igreja por um caminho perigoso e verdadeiramente blasfemo que vai contra tudo aquilo em que acreditam”, começou por afirmar, referindo-se à invasão da Ucrânia pela Rússia.
Essa liderança “alinhou-se com os crimes da guerra contra a Ucrânia”, criticou, no discurso publicado na página do CMI. “Esta ideologia totalitária, disfarçada de teologia, levou à destruição total ou parcial de tantos locais religiosos em território ucraniano: igrejas, mesquitas, sinagogas, edifícios escolares e administrativos pertencentes a comunidades religiosas. Nenhum cristão que ainda esteja na posse da sua fé, da sua mente e dos seus sentidos pode ver a vontade de Deus nisto.”
Logo a seguir, Steinmeier afirmou: “Há também representantes da Igreja Ortodoxa Russa aqui hoje. (…) Espero que esta assembleia não lhes poupe a verdade sobre esta guerra brutal e as críticas ao papel dos seus líderes eclesiásticos.”
Admitindo ainda que “os cristãos são chamados a ser construtores de pontes” e que essa “é e continua a ser” uma das “tarefas mais importantes”, acrescentou que “construir pontes requer vontade de ambos os lados do rio”. Também “o diálogo não é um fim em si mesmo” e “deve trazer à luz o que está a acontecer”, chamando “a atenção para a injustiça”, identificando “tanto as vítimas como os seus agressores”.
Os ataques militares russos contra edifícios civis são “crimes de guerra que ocorrem perante os olhos do mundo” e o Presidente Steinmeier considera que a assembleia do CMI não pode “permanecer em silêncio” sobre a questão. “Devemos chamá-lo pelo seu nome, devemos de facto denunciá-lo, e por último, mas não menos importante, como comunidade cristã devemos expressar o nosso compromisso com a dignidade, liberdade e segurança do povo ucraniano.”
Nesse sentido, recordou as “centenas de padres ortodoxos russos” empenhados na resistência pública e na oposição à guerra, “apesar das ameaças do regime de Putin”, dirigindo-se a eles, “cujo exemplo recorda a responsabilidade das religiões pela paz: mesmo que não possam assistir a esta assembleia e falar connosco hoje, estamos a ouvir!” E dirigindo-se às delegações das igrejas na Ucrânia disse-lhe esperar que da reunião “retirem força e apoio às suas igrejas e congregações que sofrem” no seu país.
Não foi só entre a delegação russa que o discurso de Steinmeier criou mal-estar. Sinal disso mesmo é que, nas notícias publicadas pelo serviço informativo do CMI acerca do discurso do Presidente alemão, não se referiam as suas críticas à Rússia e o apoio à Ucrânia. Antes se destacavam as suas reflexões sobre os símbolos desenhados no logotipo: um círculo, um caminho, a cruz e uma pomba.
De qualquer modo, a delegação russa foi lesta a reagir, manifestando a esperança de que o Conselho Ecuménico “continue a ser uma plataforma independente de diálogo que não siga no seu trabalho uma ordem política de Estados particulares, mas sim o objectivo de afirmar a paz e a harmonia”.
O metropolita Antonij de Volokolamsk, chefe da delegação, considerou “completamente infundadas” as acusações, “ignorando completamente todos os esforços humanitários feitos pelo Patriarcado de Moscovo no contexto do confronto na Ucrânia”. O metropolita russo acrescentou que a posição do Presidente era “um exemplo de pressão brutal exercida por um alto representante do poder estatal sobre a mais antiga organização ecuménica” e uma “interferência nos assuntos internos do Conselho”, bem como “uma tentativa de minar a natureza pacificadora e politicamente neutra” do trabalho do CMI.
Reinventar hoje o Conselho Mundial
O Conselho Mundial de Igrejas (ou Conselho Ecuménico, na designação francesa) representa cerca de 580 milhões de cristãos, de 352 igrejas em mais de 120 países. A assembleia prolonga-se até dia 8.
As referências do Presidente alemão à guerra foram apenas um dos discursos que tocaram o tema. Mas a assembleia faz-se também de debates, intervenções ou tempos de oração sobre o clima, a pobreza ou a unidade entre as igrejas, além dos conflitos que se registam por todo o mundo. Quatro pré-assembleias decorreram já em Karlsruhe nos últimos dias: sobre os povos indígenas, sobre e da juventude, da Rede Ecuménica de Defesa das Pessoas com Deficiência e uma outra sobre “Uma comunidade justa de mulheres e homens”.
Agnes Abuom, moderadora do Comité Central del CMI, declarou, numa conferência de imprensa inicial, que Abuom declaró deposita grandes esperanças en que “a assembleia crie una atmosfera que leve a uma celebração espiritual, uma celebração da criação e uma celebração da vida. A outra sua esperança é que as pessoas se escutem, discernindo “o caminho e a vontade de Deus para o futuro da humanidade e o futuro da criação”.
Na apresentação do seu relatório, com que abriu a assembleia, o padre Sauca insistiu na ideia da cooperação entre diferentes igrejas: “Para intervir nas dificuldades da nossa era, precisamos uns doss outro, dependemos uns dos outros e só podemos avançar se caminharmos juntos, e não separados”, afirmou. “Portanto, eu diria mesmo que se o CMI não existisse, teríamos de o inventar ou reinventar hoje”, concluiu.
No mesmo documento, Ioan Sauca referiu-se ao trabalho do CMI nos campos da justiça e da paz, da crise climática, da justiça racial, da guerra na Ucrânia e vários outros conflitos em todo o mundo, e na promoção dos direitos humanos na Terra Santa.
“Estou convencido de que, ao pensarmos no período que temos pela frente, devemos continuar a nossa jornada ecuménica comum como uma peregrinação de reconciliação e unidade dentro do paradigma global que guia o trabalho programático do CMI”, afirmou.
Referindo especificamente os temas da emergência climática e do cuidado com a criação, afirmou que o cuidado com a criação é uma questão central no testemunho das igrejas cristãs enquanto tal. “Esta é uma questão teológica. O desígnio de Deus em Cristo foi também a reconciliação e cura de toda a criação.”
Tendo em conta o tema desta assembleia – “O amor de Cristo leva ao mundo a reconciliação e a unidade” –, o padre ortodoxo romeno afirmou a sua convicção “de que o CMI continua a ser um instrumento essencial para envolver as igrejas e ampliar o seu testemunho comum como expressão fundamental de comunhão e unidade”.
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