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quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Papa no Cazaquistão, entre a Rússia, a China e a “loucura” da guerra na Ucrânia

Patriarca Cirilo ausente

 | 13 Set 2022

Papa Francisco, Cazaquistão,

O Papa Francisco discursando diante do Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, no encontro com autoridades políticas, representantes da sociedade civil e corpo diplomático. Foto da página oficial da Presidência da República do Cazaquistão.

 

O Papa chegou esta quarta-feira ao Cazaquistão “no decurso da louca e trágica guerra originada pela invasão da Ucrânia, enquanto outros confrontos e ameaças de conflito colocam em risco os nossos tempos”. No seu primeiro discurso proferido na viagem, dirigido às autoridades, representantes da sociedade civil e corpo diplomático, o Papa Francisco afirmou: “Venho para amplificar o clamor de tantos que imploram a paz, caminho de desenvolvimento essencial para o nosso mundo globalizado”.

A viagem tem como objectivo participar no VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais. Mas um dos intuitos principais da viagem era também concretizar um encontro com o patriarca Cirilo, do Patriarcado Ortodoxo de Moscovo, mas este acabou por decidir não fazer a viagem.

“O problema de um é hoje problema de todos; quem mais poder detém no mundo, tem maior responsabilidade para com os outros, especialmente dos países colocados em maior crise por lógicas de conflito”, afirmou o Papa no seu discurso.

Referindo a importância do reforço do multilateralismo, em ordem a um mundo “mais estável e pacífico”, o Papa afirmou que é “cada vez mais premente” reforçar o compromisso diplomático em “favor do diálogo e do encontro”, abandonando a lógica das “rivalidades” e dos “blocos opostos”.

“Para fazer isto, é preciso compreensão, paciência e diálogo com todos. Repito: com todos”, afirmou, no auditório da Sala de Concertos Qazaq, em Nur-Sultan, a capital do país.

O Papa falou ainda da “dombra”, instrumento tradicional do Cazaquistão, que representa “as notas de duas almas, a asiática e a europeia” deste país – situado na Ásia Central, o Oeste do território do Cazaquistão confina com o mar Cáspio, considerado o limite da Europa.

“Símbolo de continuidade na diversidade, marca a cadência da memória do país e, face às rápidas mudanças económicas e sociais em curso, recorda a importância de não se descurarem os laços com a vida de quem nos precedeu”, disse o Papa, referindo a “gloriosa história de cultura, humanidade e sofrimento” na antiga república soviética, independente desde 1991 e que foi visitada por João Paulo II em 2001.

“Como não lembrar, em particular, os campos de detenção e as deportações em massa que viram a opressão de tantas populações nas cidades e estepes infindas destas regiões?”, perguntou Francisco, apelando ao respeito pela “dignidade do homem, de cada homem e de cada grupo étnico, social, religioso”.

O Papa defendeu ainda uma “sã laicidade”, que “reconheça o papel precioso e insubstituível da religião e combata o extremismo” e falou da liberdade enquanto “aspiração inscrita no coração de cada ser humano” e “única condição para que o encontro entre as pessoas e os grupos seja real e não artificial” que se traduz no “reconhecimento dos direitos, acompanhados pelos deveres”.

Elogiando a abolição da pena de morte, o desarmamento nuclear e o “processo de democratização” do país, o Papa afirmou ser necessário que “a democracia e a modernização não sejam relegadas a proclamações, mas confluam num serviço concreto ao povo”.

“Este estilo político realmente democrático é a resposta mais eficaz a possíveis extremismos, personalismos e populismos, que ameaçam a estabilidade e o bem-estar dos povos”, afirmou ainda.

No seu discurso, Francisco lamentou a “injustiça generalizada” que atinge milhões de pessoas em todo o mundo e defendeu a necessidade de “promover o desenvolvimento económico, não com base no lucro de poucos, mas na dignidade de cada trabalhador”.

A sombra da Rússia e a ausência de Cirilo
Putin e o patriarca Cirilo, no Kremlin, em novembro de 2021. Kremlin.ru, CC BY 4.0 , via Wikimedia Commons.

Putin e o patriarca Cirilo, no Kremlin, em novembro de 2021, no Kremlin: o apoio do patriarca ao líder russo já foi criticado pelo Papa. Foto: CC BY 4.0, via Wikimedia Commons.

 

Nestes dois dias em que o Papa estará no país, Francisco encontrar-se-á com líderes religiosos, incluindo Ahmad al-Tayeb, o Grande Imã de Al-Azhar do Egipto, e celebrará uma missa para a pequena comunidade católica do país – mas na qual são esperados também crentes do Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguizistão, Mongólia e Rússia.

A Rússia era precisamente uma meta indirecta desta viagem, na qual Francisco esperava encontrar-se com o patriarca Cirilo, naquele que seria o primeiro encontro entre ambos, depois da invasão russa da Ucrânia – que o líder ortodoxo tem apoiado, pelo menos com o seu silêncio, enquanto o Papa afirmou, em Maio, ao Corriere della Sera, que “o patriarca não se pode transformar no acólito de Putin”. Também a China está no horizonte de Francisco: o Presidente chinês Xi Jinping, estará no Cazaquistão durante estes dias, mas não está programado qualquer encontro entre os dois líderes.

As alusões do Papa à guerra na Ucrânia entendem-se num contexto em que Francisco já manifestara várias vezes a sua vontade de se deslocar a Kiev – inicialmente, fazendo ali escala a caminho do Cazaquistão. Mas a logística, as condições políticas e a sua mobilidade limitada tornaram essa hipótese impossível, pelo menos por enquanto.

A decisão do patriarca Cirilo de não estar no Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais foi criticada por alguns russos. “É uma oportunidade perdida de reconciliação e paz”, lamentou Leonid Sevastianov, fundador e presidente da União Mundial dos Antigos Crentes, em declarações ao La Croix International (texto acessível a assinantes).

O líder desta organização que representa um grupo ortodoxo russo que data de um cisma de 1666, tem sido das poucas vozes ortodoxas a questionar publicamente o apoio do Patriarca Cirilo à guerra, diz o jornal. E teme, como outras figuras críticas, o clima de repressão.

A União dos Antigos Crentes que Sevastianov foi reprimida durante o período comunista, mas agora quer defender os seus direitos e a sua herança. Diz o mesmo jornal que a maioria dos Antigos Crentes são muito conservadores, mas o líder representa uma franja mais liberal.

“Porquê esta guerra?” pergunta Sevastianov, sugerindo que o Vaticano acolha negociações de paz entre a Rússia, Ucrânia e NATO, o que é uma provocação aos olhos da hierarquia ortodoxa. Cirilo, por exemplo, que é a sexta figura mais alta do protocolo de Estado, apelou aos cristãos ortodoxos russos para se reunirem para combater “inimigos externos e internos”, dizendo que a Rússia trava uma luta contra as “forças do mal” que se opõem à histórica “unidade” do seu país com a Ucrânia.

Esta versão oficial do patriarca abafa vozes como as de Sevastianov, que raramente são ouvidas pelo público em geral. “O cristianismo não pode ser arrastado para questões de patriotismo e interesses nacionais”, insiste o líder dos Antigos Crentes, que quer ser um “mediador” no diálogo com o Papa e um “embaixador de boa vontade para a promoção da paz”, diz ele.

Nesta quarta-feira, o Papa começa o dia às 10h00 (5h00 em Lisboa), com um momento de oração em silêncio que reúne diversos líderes religiosos, no Palácio da Independência, a que se segue a abertura do VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais, onde o Papa discursa. Às 16h45, Francisco preside à missa na Praça da Expo.

Na quinta-feira, o Papa tem um encontro privado com os membros da Companhia de Jesus (4h de Lisboa); segue-se o encontro com o clero, seminaristas e agentes pastorais (5h30). Às 10h de Lisboa, o Papa estará na sessão conclusiva do congresso, quando será lido o documento final. Francisco regressa depois a Roma.

 

O Cazaquistão entre dois mundos

Nesta que é a sua 38ª viagem internacional e o o 57º país visitado, o Papa encontra um território que tem um papel significativo na economia da Ásia Central e atravessa um dos territórios mais significativos da história da humanidade, como recorda James T. Keane na revista America, dos jesuítas. “Os cavalos podem ter sido primeiro domesticados no que é hoje o Cazaquistão; a antiga Rota da Seda passou pelo seu território, tal como a tentativa moderna da China de recriar essa passagem cultural e económica”, recorda o editor da revista.

Nono maior país em território total, o Cazaquistão está atravessado pela fronteira entre a Europa e a Ásia – Rio Ural e Montes Urais – e faz fronteira, além da Rússia e da China, com o Turquemenistão, Uzbequistão e Quirguizistão, a sul. Por isso, é natural que o Papa tenha destacado, a par das políticas energéticas e ambientais do Cazaquistão, a abertura do país ao diálogo inter-religioso, que traduz as “sementes concretas de esperança plantadas no terreno comum da humanidade”.

“Asseguro que os católicos, presentes na Ásia Central desde tempos antigos, desejam continuar a testemunhar o espírito de abertura e diálogo respeitoso que carateriza esta terra”, afirmou ainda, no seu discurso.

Essa “posição única” do país na promoção do diálogo entre culturas e religiões foi destacada também pelo Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, na saudação que dirigiu ao Papa.

Apesar da sua extensão, o Cazaquistão tem uma população de pouco mais de 19 milhões de pessoas – o dobro de Portugal; e o vizinho Uzbequistão, apenas com um sexto do tamanho, tem mais de 35 milhões de habitantes. A maioria da população é muçulmana (70%, na sua maioria muçulmanos sunitas). Os cristãos (26%) são, na maioria, ortodoxos. Quase todos os 250 mil católicos do país são de origem polaca, alemã e lituana, consequência da ligação histórica do país ao império russo e à União Soviética.

A história dessa presença começou, lembra James T. Keane na America, quando, em 1763, a imperatriz Catarina a Grande, da Rússia (de nacionalidade alemã) convidou imigrantes alemães a estabelecerem-se na Rússia, em troca de terra, liberdade de religião e de poder usar a sua língua. Em meados do século XIX, já eram meio milhão os alemães no país.

A retirada progressiva de privilégios, e a perseguição durante e após a Grande Guerra 1914-18 levou muitos a emigrar para o Canadá, Estados Unidos e América do Sul. E, durante a Segunda Guerra Mundial e o regime de Estaline, os “alemães” foram retirados das suas casas para evitar que colaborassem com os nazis e mudaram-se para áreas mais remotas da União Soviética, enquanto muitos morreram em campos de prisioneiros ou devido à fome. Mais de 100.000 foram então deportados para o Cazaquistão, a par de polacos, lituanos, gregos e ucranianos.

Com o fim da União Soviética, em 1991, mais de dois milhões de alemães aproveitaram a possibilidade de regressar à Alemanha unificada, que lhes foi oferecida pelo país. A população católica do Cazaquistão reduziu-se, assim, significativamente tornando-se, ao mesmo tempo, mais internacional.

Com grande parte do território ocupado pela pastorícia e por grupos nómadas (“cazaque”, como “cossaco”, significa “vaguear”, explica o mesmo editorialista), o país só viu a agricultura e e a industrialização vulgarizarem-se sob o domínio russo e soviético no século XX – hoje, um quarto da população activa ainda vive da agricultura.

País em desenvolvimento, com recursos naturais que incluem petróleo e gás, o Cazaquistão exporta também minerais raros e produtos químicos; as receitas destas e outras exportações (incluindo produtos agrícolas) tem permitido um consistente crescimento económico nas últimas três décadas, depois da estagnação e de vários desastres ambientais do tempo soviético – a quase completa evaporação e a dispersão de poluentes no Mar de Aral, bem como o desvio das fontes de água tornaram grande parte da região inóspita à vida humana e animal e fizeram com que quase todo o leito do lago se transformasse num deserto tóxico, recorda a America no texto citado.

Foi do Cazaquistão que a União Soviética lançou o primeiro satélite (o Sputnik) e a primeira missão espacial tripulada (com Yuri Gagarin) e a Rússia continua a lançar satélites e naves espaciais do Cosmódromo de Baikonur, no sul do país. E é do Cazaquistão o alter ego ficcional do actor Sacha Baron Cohen, o jornalista de televisão Borat.



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