TODOS IRMÃOS
Nota de
apresentação da encíclica Fratelli Tutti,
sobre a
fraternidade e a amizade social
Comissão
Nacional Justiça e Paz
Nesta
apresentação da encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e amizade
social, deverá ser salientado, antes de tudo, o que nela se afirma a respeito
do fundamento da fraternidade. «Sem uma abertura ao Pai de todos, não pode
haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade» (n. 272). Ou, mais
profundamente (n. 85): Quem acredita que Deus ama cada ser humano com amor
infinito confere-lhe uma dignidade também infinita; se Cristo derramou o seu
sangue por todos, ninguém pode ser excluído do seu amor universal; a fonte
suprema desse amor universal é a própria vida íntima de Deus, uma unidade de
três Pessoas que é origem e modelo de toda a vida comunitária. É nestas
verdades que assentam os alicerces da fraternidade, cujas consequências em
múltiplos âmbitos são analisadas ao longo da encíclica.
O apelo à abertura universal da fraternidade confronta-se hoje
com o reforço, um pouco por todo o lado, de correntes inspiradas num
nacionalismo de exclusão («nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e
agressivos» – assim são designados na encíclica – n. 11). A encíclica aborda
este tema com alguma insistência, salientando, por um lado, o fundamento
bíblico dessa abertura e, por outro lado, desfazendo receios de que ela leva à
perda das identidades nacionais diante de uma globalização uniformizadora.
Nessa perspetiva é encarado o fenómeno das migrações, que também é encarado à
luz de critérios de justiça social.
Quanto ao fundamento bíblico da abertura à fraternidade que não
exclui os estrangeiros, são evocadas passagens do Antigo Testamento como a de
Lv 18, 33-34: «O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos
vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na
terra do Egito». E é apresentada a parábola do Bom Samaritano situando-a no
contexto judaico, de forte hostilidade para com os samaritanos: uma forte
provocação no sentido da superação de preconceitos e barreiras históricas e
culturais (n. 83).
Com ênfase, salienta a encíclica como a abertura a outras
culturas é enriquecedora para pessoas e povos: «uma pessoa e um povo só são
fecundos se souberem criticamente integrar no seu seio a abertura aos outros»
(n. 41). A globalização não deve uniformizar e destruir «a riqueza e
singularidade de cada pessoa e de cada povo» (n. 100). Mas uma cultura que se
fecha pode sofrer de “esclerose”. «As várias culturas, cuja riqueza se foi
criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas, para que o mundo não
fique mais pobre»; «(…) porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir
de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades» (n. 134). «Não me
encontro com o outro se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado,
pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de
autêntico»; «cada qual ama e cuida, com particular responsabilidade, da sua
terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria
casa» (n. 143). Porém: «Ao olhar para si mesmo do ponto de vista do outro, de
quem é diferente, cada um pode reconhecer nele as peculiaridades da sua própria
pessoa e cultura, as suas riquezas, peculiaridades e limites»; «as outras
culturas não constituem inimigos de quem seja preciso defender-se, mas reflexos
distintos da riqueza inexaurível da vida humana» (n. 147); «uma sã abertura não
ameaça a identidade, porque ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma
cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades,
segundo modalidades próprias», o que provoca «o nascimento de uma nova síntese,
que, em última análise, beneficia a todos» (n. 148). Isto é assim porque nenhum
«povo ou cultura pode obter tudo de si mesmo» (n. 150). E, em conclusão: «Toda
a cultura saudável é por natureza aberta e acolhedora, não estática» (n. 146).
Como em muitas outras ocasiões, o Papa Francisco recorre às
imagens da esfera e do poliedro para indicar o rumo que deveria seguir a
globalização. «O universal não deve ser o domínio homogéneo, uniforme e
padronizado duma única forma cultural imperante, que perderá as cores do
poliedro» (n. 144). Na imagem do poliedro, «cada um é respeitado no seu valor,
o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma dela», ao
contrário da imagem da «esfera global que aniquila», ou da «parte isolada que
esteriliza» (n. 145).
A esta luz é encarado o fenómeno das migrações, cada vez mais
incontornável no mundo de hoje. Mas também numa perspetiva de justiça social à
luz do princípio do destino universal dos bens. Os bens de um país não devem
ser negados a quem provém de outro lugar (n. 124). Cada nação é co-responsável
pelo desenvolvimento de todas as pessoas, o que pode traduzir-se de dois modos,
que não se excluem mutuamente (como, por vezes se alega): no acolhimento de
imigrantes e no contributo para o desenvolvimento dos países de origem destes
(n. 125). É verdade que o ideal seria que a emigração não fosse necessária, mas
enquanto não houver sérios progressos no sentido do desenvolvimento dos países
pobres, há que reconhecer o direito de cada pessoa a encontrar um lugar onde
não só possa satisfazer necessidades básicas, mas também realizar-se plenamente
como pessoa (n. 129).
Com as migrações, todos podem ganhar, porque todos perdem quando
em qualquer lugar há pessoas e povos que não desenvolvem todo o seu potencial e
toda a sua beleza por causa da pobreza (n. 137). Mas o acolhimento autêntico
supõe a gratuidade que falta na atitude utilitarista de países que pretendem
receber apenas cientistas e investidores (n. 139)[1].
A propósito do princípio do destino universal dos bens, este é
reafirmado na encíclica também com grande ênfase, como direito natural,
primordial e prioritário, «primeiro princípio de toda a ordem ético-social».
Outros direitos, incluindo o de propriedade privada, estão-lhe subordinados,
devem facilitar a sua realização, não impedi-la (n. 120).
A respeito do funcionamento da economia, são criticadas as
posições que do mercado esperam a solução de todos os problemas: um pensamento
«pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer problema
que surja» (n. 168).
Quanto ao combate à pobreza, afirma o Papa, na linha do que já
anteriormente havia afirmado, que os subsídios devem ser sempre «um remédio
provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma
vida digna através do trabalho. «O trabalho é uma dimensão essencial da vida
social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o
crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si
próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável do mundo e, finalmente, viver
como povo» (n. 162).
A missão do empresário é enaltecida na medida em que cria
oportunidades de trabalho para outros (e assim contribui para o destino
universal dos bens), um modo de desenvolver as capacidades que Deus nos deu e
as potencialidades de que encheu o universo» (n. 123).
Quanto à dívida dos países mais pobres, afirma a encíclica:
«Embora se mantenha o princípio de que toda a dívida legitimamente contraída
deve ser paga, a maneira de cumprir este dever que muitos países pobres têm
para com países ricos não deve comprometer a sua subsistência e crescimento»
(n. 126).
Severa é a crítica à especulação financeira que condiciona o
preço dos alimentos, tratados como qualquer mercadoria, provocando desse modo a
fome de muitas pessoas, fome que é «criminosa» (n. 189).
Um relevo especial é dado na encíclica a todas as formas de
diálogo. Muitas vezes, porém, confunde-se o diálogo com monólogos paralelos. «O
diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista
do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses
legítimos» (n. 203). Na verdade: «De todos se pode aprender alguma coisa,
ninguém é inútil, ninguém é supérfluo» (n. 210).
Isto não significa aderir ao relativismo, como se a verdade
estivesse sujeita a consensos ou negociações. Mesmo que se deva reconhecê-la,
ou as suas implicações concretas, através do diálogo, há «verdades que não
mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão» (n. 208). A ética e a
política não podem assemelhar-se à física, como se não existissem o bem e o mal
em si mesmos, mas apenas cálculos de vantagens e desvantagens (n. 210). Se não
fosse assim, se não houvesse verdades transcendentes, os direitos humanos poderiam
ser negados «pelos poderosos de turno depois de terem obtido o “consenso” de
uma população adormecida e amedrontada» (n. 209).
Muito distante do verdadeiro diálogo, está um uso frequente de
redes sociais marcado por uma «agressividade despudorada», onde se recorre a
expressões e posturas que outrora envergonhariam qualquer pessoa (n. 44). Os
meios digitais também favorecem o encontro entre pessoas com as mesmas ideias e
dificultam o confronto com quem tem ideias diferentes (n. 45).
À arte do diálogo está também associada a missão da política,
caracterizada como «sublime vocação, uma das formas mais preciosas de caridade,
porque busca o bem comum». Salienta-se, assim, a dimensão social e política da
caridade, porque é caridade acompanhar a pessoa que sofre, mas também modificar
as condições sociais que provocam o seu sofrimento (n. 186). A caridade não se
confunde com o sentimentalismo subjetivo, supõe um compromisso com a verdade
(n. 184). E aspira à eficácia, não se fica pelas boas intenções (n. 185).
Um destaque particular é dado na encíclica à reconciliação, ao
perdão (este também na sua relação com a justiça) e à paz.
A verdade, a misericórdia e justiça são essenciais para
construir a paz e cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (n.
227).
Quando Jesus afirma que não veio «trazer a paz, mas a espada»
(Mt 10, 34-36), não convida a provocar conflitos, mas a suportar o conflito
inevitável, para que o respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome
duma suposta paz familiar ou social (n. 240). A verdadeira reconciliação não
escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do
diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes (n. 244).
Repetindo a máxima que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma que «a
unidade é superior ao conflito», o que não significa ignorar o conflito mas
resolvê-lo «num plano superior que preserva as preciosas potencialidades das
polaridades em contraste» (n. 245).
Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal não
significa consentir que continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável
o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o
poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar
a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não
anula as necessidades da justiça, reclama-as (n. 241).
Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça
procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das
vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a
suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite
buscar a justiça sem cair no círculo viciosos da vingança nem da injustiça do
esquecimento» (n. 252).
De resto, a vingança «nunca sacia verdadeiramente a insatisfação
da vítima» (n. 251).
Mas o perdão é sempre possível. «Mesmo que haja algo que jamais
pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar» (n.
250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste ao
arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).
A respeito da guerra, é forte na encíclica a expressão do seu
repúdio como meio de resolução de conflitos. Relembra-se as condições muito
estritas da sua legitimidade como último recurso de defesa, tal como vêm
enunciados no Catecismo da Igreja Católica. Alerta para a tendência que
se verifica sempre de tentar encontrar justificações para qualquer guerra, e
também de alargar injustificadamente o âmbito da legítima defesa
(exemplificando com a noção de “guerra preventiva”[2]). As teses
mais antigas sobre a “guerra justa”, que não a limitam a situações de estrita
defesa, estão hoje superadas, perante os danos que qualquer guerra hoje (mais
do que no passado) acarreta, sempre superiores aos que com ela se pretende
evitar, condição que sempre foi colocada para a sua legitimidade (n.
258).
Afirma também a encíclica que a verdadeira paz não pode assentar
na dissuasão, no medo e nas ameaças de destruição mútua, que só criam uma falsa
segurança e a desconfiança mútua. Por isso, na linha do que já de outras vezes
afirmou, o Papa apela à eliminação total da simples posse de armas nucleares.
Essa eliminação é não só um desafio, mas «um imperativo moral e humanitário».
Exige uma resposta «coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca» (n.
262).
Reafirma também a encíclica a oposição à pena de morte,
qualificada como «inadmissível» (n. 263). Ao contrário do que com frequência se
salienta no sentido da descontinuidade do magistério do Papa Francisco neste
campo com a doutrina anterior, aqui é salientada a continuidade com o
magistério de São João Paulo II (que também inovou e de que não será possível
recuar) e são também citadas manifestações de oposição à pena de morte desde os
primeiros tempos da Igreja (n.s 263 e 265).
O cerne da oposição à pena de morte reside, porém, na distinção
entre o crime e a dignidade pessoal do criminoso, que nunca se perde, nem num
autor do crime mais grave, nem em qualquer outra pessoa. Citando São João Paulo
II, afirma Francisco: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o
próprio Deus se constitui seu garante». E continua: «A rejeição firme da pena
de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de
todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o
nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a
possibilidade de compartilhar comigo este Planeta, apesar do que nos possa
separar» (n. 269).
Também a pena de prisão perpétua é, como noutras ocasiões já
sucedeu, condenada como «pena de morte escondida» (n. 268).
Ao longo de toda a encíclica, são frequentes as referências ao Documento
sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum,
assinado pelo Papa Francisco e pela máxima autoridade do Islão sunita, o Grande
Imã da universidade Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro
de 2019. O Papa afirma que foi especialmente estimulado por esse documento e
que nesta encíclica aprofunda e desenvolve muitos dos temas nele abordados (n.
5). Os apelos desse documento são reproduzidos no final da encíclica (n. 285).
Assim, a fraternidade universal é associada ao
diálogo e amizade entre fiéis de diferentes religiões. Reafirma-se o que nesse
documento se diz a respeito da rejeição da violência e do terrorismo: «A
violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais,
mas nas suas deformações» (n. 282). E, também, citando diretamente a Declaração
de Abu Dhabi: a violência em nome da religião é «fruto de desvio dos
ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das
interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – em algumas fases
da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos
homens» (285).
A crença em Deus não pode conduzir à violência. É
assim, desde logo, porque «aquele que não ama não chegou a conhecer Deus, pois
Deus é amor» – 1 Jo 4.8 (n. 283).
Salienta-se o valor da liberdade religiosa, que deve ser
garantida a todos, onde os cristãos são minoria e onde são maioria (n. 279).
Eis, assim, muitos dos aspetos abordados nesta encíclica. Ainda
muitos mais poderiam ser salientados. Para os católicos, trata-se de um
documento a estudar com afinco e a viver com coerência. Mas muitas outras
pessoas, cristãos de outras denominações, fiéis de outras religiões e todos os
que aderem a ideais de fraternidade, podem dela colher, de uma ou de outra
forma, inspiração. Fazemos votos de que tenha, por isso ampla difusão.
Lisboa, 4 de outubro de 2020
A Comissão Nacional Justiça e Paz
[1] Vem à mente,
a este respeito, a “opção preferencial pelos ricos” que se reflete no
tratamento dos vistos gold, por exemplo.
[2] Veja-se o que sucedeu na guerra do
Iraque, cuja legitimidade foi negada por São João Paulo II, o qual procurou de
todas as formas evitá-la.
CNJP - Comissão Nacional Justiça e Paz
Conferência Episcopal Portuguesa
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E-mail
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