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sábado, 31 de outubro de 2020

Entre a água e a selva

Tentei descobrir quem foi de fato o autor da frase, mas não consegui. Sua autoria é atribuída por uns a Georges Clemenceau, por outros a Bertrand Russel, a Bernard Shaw e até mesmo a Churchill: “Quem aos vinte anos não é comunista, não tem coração. E quem assim permanece aos quarenta anos, não tem inteligência”. Não ter um pouco de utopia, de amor à humanidade e uma boa dose de idealismo no peito faz de um jovem um sanguessuga do futuro. Um velho, encalhado em sua pequenez, sem a remissão das marés de generosidade e que desde cedo queimou seus remos. Compreendemos, portanto, os arroubos juvenis e mesmo os apreciamos.

Andar pelo centro de uma metrópole brasileira, e me deixar ficar para admirar os talentos de rua, é um prazer que não dispenso. Para evitar dissabores, me entrego a esta contemplação quando nada tenho nas mãos, ou nos bolsos, o que me permite prestar atenção nos espetáculos mambembes e não nos circunstantes, dentre os quais pode estar um amigo do alheio, um batedor-de-carteiras ou, como se referia a imprensa no passado, um punguista.

Dos malabaristas aos repentistas, fico com os mágicos. Observo a técnica de que se valem para reunir pessoas. Há os mais carismáticos, que mal abrem a boca já conquistam pequeno público. Há outros que precisam remar muito para atravessar o canal da solidão. Falam pelos cotovelos e anunciam algo impossível: “Este martelo que está no chão virá até a minha mão sozinho, sem que eu me agache!” Engraçado como as pessoas gostam de ouvir absurdos. O martelo faz que não é com ele e lá fica. O mágico o ameaça e muda de assunto. Pega um conjunto de argolas, daquelas que serão encadeadas de maneira aparentemente impossível. Passa uma senhora com a filha pela mão e ele não perde a chance: “Sua filha é curiosa! A curiosidade é sinal de inteligência ...”. A mãe estanca, obedecendo o leve puxão da filha. Como não prestar um pouco de atenção a um ágil parlapatão que tem uma palavra para cada ouvinte? São habilidades longamente desenvolvidas, que naturalmente contam com o talento dos animadores de auditório.

Por mais que demore, se o camarada não é pra lá de ruim, a roda acaba se formando. E quanto mais ela evolui, mais rapidamente incha. Dá-se então o salto numérico: de repente as pessoas são represadas pelos que já foram capturados pela curiosidade e se forma a roda maior. Pronto, agora resta ao artista tirar o melhor proveito, criando expectativa, suspense, conduzindo as pessoas ao riso e, de certa forma, ao nada. Os capturados não vêem o tempo passar.

Enquanto o sujeito continuava prometendo que o martelo levitaria, achei que tudo era metáfora pura das ideologias. Um sujeito espaventa teorias, distribui graciosamente chavões como um prestidigitador e acaba reunindo em torno de si alguns assistentes. Depois disto, com mais ou menos carisma, catalisa atenções desinteressadas e arrebanha acólitos nem tão inocentes. Então entram em cena as argolas mágicas, o baralho com cartas viciadas, varinha mágica e naturalmente o martelo, como crença no impossível. O impossível que ainda vai acontecer, mas que de segunda a segunda ninguém na praça viu. Já não importa, o martelo é questão de fé.

Tomado por estas reflexões, entro numa livraria e não saio de mãos abanando. Lá estava à minha espera o relato de um alemão que deixou para trás uma carreira académica, a arte musical e a senda de escritor para estudar medicina e aos vinte e oito anos rumar para a África:

“Lera e ouvira testemunhos de missionários revelando a miséria física dos autóctones. E quanto mais refletia sobre isso, menos conseguia compreender como nós, europeus, nos preocupávamos tão pouco com a grande tarefa humanitária que essas regiões longínquas apresentavam. Parecia-me que a parábola do homem rico e do pobre Lázaro se encaixava bem no nosso caso. O opulento seríamos nós, pois os avanços da medicina nos proporcionaram enormes conhecimentos e processos eficazes contra a doença e a dor. As vantagens incalculáveis dessa riqueza nos parecem algo muito natural. Lá fora, nas colónias, está o pobre Lázaro, o negro, que sofre tanto ou bem mais do que nós com a doença e o sofrimento, porém não dispõe de nenhum meio para combatê-los. Agimos como o homem rico, pecando com a indiferença para com o pobre sentado no seu patamar, pois o rico não se punha no lugar do seu semelhante e nem deixava que o próprio coração se enternecesse”.

Este cidadão chamava-se Albert Schweitzer, notável humanista que seria agraciado com o Nobel da Paz em 1952 e que faria muito mais que tergiversar sobre martelos. Não, o mundo não precisa de comunistas com quarenta anos, nem de ideologias, sempre excludentes. Nossa remissão, se existe, e assim o creio, está no coração dos idealistas, na entrega dos humanistas.

J. B. Teixeira


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