Num dos programas desta casa presto apoio como cinegrafista. Nosso editor entrevista as mais variadas personalidades da região e as gravações são realizadas na beira do rio Caí. O acervo, que já vai grande, visto de perto é um mosaico incerto. Visto de longe traduz o rosto da própria comunidade a que servimos, prestando informação e incentivando a formação de consciências.
Dias atrás gravamos o programa num quiosque do cais. Como pano de fundo o rio barrento, alguns pescadores metros abaixo e a mata na margem oposta. Quando chegamos, dois cidadãos ocupavam o espaço. Estavam muito embriagados e um deles logo se foi. O outro queria de qualquer forma colaborar ... Aproximava-se de vez em quando para oferecer seus préstimos: “Qualquer coisa, é nóis na área ... Pode ser na cancha, na arena ou no lombo!”. Pelo linguajar suponho que tenha se calejado nas artes campeiras. Amuado, disse a ele que estávamos gravando. Com hálito de quem se encharcara com aguardente, levou o indicador aos lábios e, nada lúcido mas compreensivo, disparou um “Pxxxx!” e afastou-se.
Aquele pobre pau-d´água desceu as escadas e passou a confabular com alguns que ali estavam a pescar. Não havia Pedro, nem a barca, nem a menor semelhança entre aquelas águas turvas e o lago de Genesaré. Fiquei a imaginar que o desejo daquele infeliz fosse apenas o de seguir bebendo algures e alhures com qualquer um. Sem rumo, sua recuperação está tão próxima quanto o próximo copo. Passados os dias, sigo rindo do que repetiu várias vezes quando voltava a me olhar. Diante de minha cara de poucos amigos repetia, respeitoso, o “Pxxxx!”. Pobrezinho.
Deixemos cair o pano. Segundo ato. Um de meus amigos perdeu a esposa. A perda foi inesperada, o que o deixou mais ou menos como cachorro que caiu da mudança. Conversamos um pouco sobre o transe doloroso. Ainda perdido me disse que há dois absurdos na vida: o nascimento e a morte. Nem pensei em contestar porquanto poucas coisas podem ser tão inócuas quanto as frases tradicionais pronunciadas a título de consolação. Respondi apenas que João Paulo II, santo capaz de orar por horas, afirmou certa feita que a dor é um mistério.
Pedindo a Deus que me libere desta dor, eis que sou mais velho que minha esposa, fiquei a lembrar do tempo em que nos unimos. Entre os impulsos da natureza e o encantamento de ter ao meu lado a mulher que amo, cheguei a pensar que nunca mais dormiria direito. O trabalho, os compromissos e o tempo ajustaram os ponteiros do relógio, que por muito giraram como cata-vento sob intensa brisa. Tais lembranças me ajudam a dimensionar a dor da perda conjugal.
Pensando em ajudar o amigo, busquei a sabedoria de C.S.Lewis, um dos maiores intelectuais do século XX. Nascido em Belfast, ateu convicto a partir dos dezessete anos, tomou parte da 1ª Guerra Mundial nas trincheiras da França. Ferido, orgulhava-se de que, em meio àquele inferno, “nunca descera tão baixo a ponto de orar”. Mais tarde registraria que travou contato com a ilusão do oculto e confessou que, houvesse aparecido a pessoa errada durante sua adolescência, poderia ter virado feiticeiro ou lunático. Ao ingressar em Oxford conheceu espiritualistas e sua fascinação transformou-se em repulsa. Passado dos trinta, Lewis converteu-se ao cristianismo.
Mas a existência não está imune aos trancos do destino. Lewis casou-se, aos cinquenta e seis, com Joy Davidman, hospitalizada, com câncer. Almas gêmeas, viveriam alguns anos de muita felicidade, por vezes esquecidos, em meio a períodos estáveis, da sentença de morte jamais revogada. Quando Joy se foi, Lewis perdeu o rumo e brevemente a fé: “Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma idéia de vir a necessitar d´Ele ... Mas volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio”. Em “A anatomia de uma dor” Lewis revela sofrimento, desconsolo e as reflexões que o reconduziram à fé: “Ele sempre soube que meu templo era um castelo de cartas. A única forma de fazer-me compreender o fato foi colocá-lo abaixo”.
Lewis encerra o opúsculo com a citação de um trecho da Divina Comédia, aquele no qual Dante escuta de sua Beatriz “Estou em paz com Deus”. Estimo que meu amigo se recupere. Talvez isto se dê quando perceber que não entendemos as coisas de Deus e que seremos mais felizes se nos espelharmos em Jó. A dor, como a embriaguez, haverá de passar.
J. B. Teixeira |
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