Mário Soares dizia que não era crente porque não tinha sido tocado pelo dom da fé. De facto, a fé é uma dádiva (dom) de Deus. Segundo o apóstolo Paulo: “Não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:9). Ou seja, a fé, sendo algo sobrenatural, não é mérito humano. O factor humano só intervém no processo de gestão desse dom. Se eu tenho fé, se a aprecio e quero continuar a tê-la, procuro estimulá-la em mim (S. Judas Tadeu chama-lhe “santíssima fé” – Judas 1:20), mas se não a considero, então não faço nada nesse sentido e acabo por perdê-la. É simples. Paulo exorta Timóteo a conservá-la: “Conservando a fé, e a boa consciência, a qual alguns, rejeitando, fizeram naufrágio na fé” (1 Timóteo 1:19); “Guardando o mistério da fé numa consciência pura” (3:9).
O que o antigo Presidente da República e presidente da Comissão de Liberdade Religiosa parecia não entender é que a fé em Deus é uma escolha, pois é dada liberalmente a qualquer pessoa que a procura e não o resultado duma selecção divina, de forma aleatória ou discriminatória: “Porque, para com Deus, não há acepção de pessoas” (Romanos 2:11). O cristianismo é uma religião de revelação, sendo a maior fonte de revelação as Escrituras sagradas: “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir a palavra de Deus” (Romanos 10:17).
Tomás Halík diz que a religião mais difundida dos nossos dias é o “algoísmo”, com esta base de crença: “Eu posso não acreditar em Deus, mas tem de haver alguma coisa acima de nós.” Portanto, grande parte das pessoas estão disponíveis para crer no sobrenatural mas não num Deus pessoal. Será uma divindade presente na energia, no cosmos ou na natureza, mas não um ser divino com personalidade, com uma dimensão moral, com vontade própria e que se dá à relação connosco.
Se é evidente que as religiões sequestraram Deus tantas vezes dentro duma caixa epistemológica, ritual e conceptual, passando a falar em seu nome e a criar leis e regulamentos abusivos para os fiéis, travestindo uma comunidade de fé numa estrutura organizacional com vista ao exercício do poder, também é verdade que muitos indivíduos não conseguem conceber a existência humana sem uma dimensão metafísica.
Nem o progresso, nem o avanço da educação e da ciência resolveram esta questão. Por isso temos hoje alguns dos maiores cientistas do mundo que se declaram crentes em Deus, enquanto outros colegas seus de calibre intelectual semelhante se nomeiam ateus ou agnósticos. Assim, a fé não é uma questão de dimensão intelectual, de cabedal científico, formação, educação ou falta delas, antes se movendo numa outra dimensão, já que ninguém pode provar cientificamente a existência de Deus nem a sua inexistência.
De facto a educação ajuda muito mas não é sinónimo de respeito e humanidade. Consta que no fim da II Guerra Mundial alguém encontrou uma carta num dos campos de concentração, dirigida aos professores: “Como sobrevivente de um campo de concentração vi o que ninguém devia ter visto. Câmaras de gás construídas por engenheiros, crianças envenenadas por médicos, recém-nascidos mortos por enfermeiras, e mulheres e bebés fuzilados e queimados por licenciados em universidades. Assim, tenho dúvidas sobre a eficácia da Educação. Por favor, ajude os seus alunos a tornarem-se humanos. Que do seu trabalho nunca resultem monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se fizerem as nossas crianças mais humanas.”
Muita gente não consegue superar o facto de, em nome das religiões, se terem promovido guerras e destruição, muito embora também os não-religiosos tenham provocado morte e devastação ainda maiores, como Mao, Estaline ou Pol Pot. Talvez por isso muitos tenham alergia às estruturas religiosas mas preservem a sua crença em Deus, a acreditar nos estudos sociológicos mais recentes. Em última análise, Deus não terá culpa das asneiras dos homens, mesmo quando realizadas (abusivamente) em seu nome.
Os crentes sem religião gostam de visitar locais que remetem supostamente para uma conexão com uma entidade difusa, algo que criou o universo e que deu o primeiro clique para que a vida nascesse do nada. Tais sítios podem ser o topo duma montanha, uma falésia junto ao mar ou um templo. Afinal, talvez seja necessário muito mais fé para crer em algo indefinível e inalcançável do que no Deus de amor, misericórdia e relação representado em Jesus Cristo, o qual “sendo o resplendor da sua glória” é ainda caracterizado como “expressa imagem da sua pessoa” (Hebreus 1:3).
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na página digital da revista Visão.
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