O acordo entre Moscovo e Pequim pode deslocar o centro de gravidade económico global para o Oriente, mas não representa uma ameaça para a Europa, que, pelo contrário, poderia tirar lições para uma política com mais visão de futuro com o Leste
Roma, 28 de Maio de 2014 (Zenit.org) Dario Citati
No passado dia 20 de Maio, a Federação Russa e a República
Popular da China assinaram um acordo de energia de importância
histórica. Na presença dos Chefes de Estado, Vladimir Putin e Xi
Jinping, os dirigentes da empresa russa Gazprom e da chinesa CNPC
assinaram um contrato no valor de mais de 400 mil milhões de dólares, que
prevê, para trinta anos, o fornecimento de gás russo para a China, por
uma quantidade de 38 mil milhões de metros cúbicos por ano, com um
crescimento estimado até os 60 mil milhões (1). Para Pequim, este acordo tem
um valor importante no plano ambiental e da modernização económica,
porque consentirá reduzir a utilização poluente do carvão; para Moscovo,
trata-se sim de uma saída para os seus imensos recursos naturais, que
confirmará ainda por décadas o sector energético como o vector principal
da potência russa.
É importante lembrar que as negociações para chegar a este acordo
duraram cerca de dez anos. A crise na Ucrânia e as sanções impostas à
Rússia pelos EUA e UE aceleraram provavelmente a conclusão do contrato,
mas em si mesmo é uma estratégia geo-económica que as duas potências
estavam perseguindo há algum tempo, embora não sem dificuldades e
mal-entendidos. Além disso, o início do fornecimento está previsto para
2018 e não exclui nenhum dos outros mercados de fornecimento do gás
russo, incluindo o europeu, mas simplesmente os integra com um novo,
diversificando as exportações de Moscovo.
Mesmo nesta circunstância, como tem acontecido cada vez mais
frequentemente, no passado recente, deve-se notar que, infelizmente,
muitos meios de comunicação europeus e norte-americanos tendem a
representar a situação com a lógica da Guerra Fria, o que não se reflecte
na realidade das coisas. Vários meios de comunicação começaram a
enfatizar o evento com títulos como a Rússia-China: rumo a uma aliança
contra o Oeste (2), sem ser convincentes ao explicar as razões.
Não se compreende, de fato, porque nunca um acordo energético entre
dois Estados vizinhos, cujas negociações já acontecem há uma década,
tenha que ter sido pensado “contra” alguém, especialmente quando um
destes dois Países, a Rússia, foi recentemente atingida por sanções económicas, mas não adoptou até agora nenhuma medida de retaliação contra
a Europa. No entanto, directamente ou implicitamente, a sensação que o
leitor comum tem ao ouvir as notícias e ao ler os jornais é de que ter
relações com Moscovo é extremamente arriscado, porque a Rússia seria um
País isolado da civilização no plano político e pronto para deixar que
os europeus se congelem por causa dos seus inconfessáveis interesses económicos.
O grande paradoxo, revelador da imprecisão analítica ou da má-fé
desta russofobia assustadora, é que o espectro da Rússia tem agitado
muito mais hoje do que no passado. Por meio século, quando a Rússia era a
URSS e ameaçava realmente o Velho Continente por meio dos seus arsenais
e as suas quintas colunas (os partidos comunistas da Europa ocidental),
a sua confiabilidade como fornecedora de energia nunca criou problemas e
se demonstrou capaz de ir além do confronto ideológico.
Hoje, porém, a Federação Russa é um País talvez com muitos problemas e
contradições, mas ainda interessado em um processo de modernização económica, plenamente inserido no mercado global, recentemente integrado
na OMC e com um nível de liberdade e perspectivas de desenvolvimento
incomparáveis com relação ao passado soviético. Distanciando a Rússia de
si, a Europa não trabalha pela sua auto-suficiência energética, mas, em
vez disso, aumenta a sua dependência de outros fornecedores,
especialmente dos Países muçulmanos do Norte da África e do Oriente
Próximo, caracterizados por um nível muito maior de instabilidade
interna.
Uma estratégia energética europeia que tivesse realmente um visão de
futuro deveria agregar outras fontes ao abastecimento da Rússia, mas
certamente não excluindo este último, que continua sendo o maior
detentor de recursos naturais do planeta e, historicamente, o provedor
mais seguro da Europa.
Do lado geopolítico, o acordo energético entre a Rússia e a China
pode ser lido em paralelo com as negociações sobre o mercado
transatlântico entre os Estados Unidos e Europa. Trata-se de um projecto
com o qual Washington visa construir, talvez em 2015, uma zona de livre
comércio com a UE que levanta muitos questionamentos sobre temas
respectivos à protecção dos dados pessoais, a segurança alimentar e a
tutela dos produtores locais na Europa (3). Estes dois acordos económicos, um que acaba de ser assinado (o russo-chinês), o outro no
processo de problemática definição (o euro-americano), antes mesmo das efectivas repercussões económicas têm um papel importante na estratégia
de “construção do inimigo” para influenciar a opinião pública.
Poder-se-ia imaginar um cenário desse tipo: se fosse adiante o mercado
transatlântico, mas os contrastes geopolíticos entre os Estados Unidos e
Rússia tivessem que persistir, os meios de comunicação poderiam
facilmente falar do eixo russo-chinês como do novo inimigo do
"Ocidente".
São previsões válidas? No momento, a possibilidade concreta de que o
acordo energético entre a Rússia e a China constitua o prelúdio da
formação de um “bloco oriental” que vê Moscovo e Pequim contrapostos a
Washington e Bruxelas parece muito difícil, por muitas razões. Em
primeiro lugar, as duas potências sempre tiveram um relacionamento
ambivalente, feito de cooperação e competição.
Na Ásia Central, por exemplo, elas disputam a influência sobre as
antigas repúblicas soviéticas; a Sibéria, região rica e desabitada de
uma Rússia em constante declínio demográfico, está, há muito tempo, no
centro de uma invasão da população chinesa que preocupa bastante o
Kremlin. Moscovo e Pequim são duas grandes potências vizinhas e, como
tais, são chamadas a cooperar, fazendo complementários os respectivos
interesses para não se prejudicarem mutuamente. A Organização da
Cooperação de Shangai (SCO), fundada em 2001 com o objectivo de combater
“os três males” (separatismo, extremismo, terrorismo), é a principal
assembleia na qual os dois Países procuram regular tais questões, além,
naturalmente, das relações bilaterais.
Outro factor que deve ser considerado é que o desenvolvimento da
economia chinesa ainda está ligado duramente aos Estados Unidos, do
qual, como se sabe, Pequim detém a maior parte do débito público. A
China não tem, portanto, nenhum interesse oposto frontalmente à Europa e
muito menos aos Estados Unidos, cujos mercados permanecem até mesmo
fundamentais para a saída comercial e, ultimamente, como terreno de
aquisição de terras estratégicas. Acrescente-se, finalmente que nas
crises políticas e militares internacionais, a China mantém, desde
sempre, um perfil bastante isolacionista, sem nunca impor um forte ponto
de vista em nenhuma circunstância (assim tem sido para as invasões no
Afeganistão, Iraque, Líbia, para as guerras civís na Síria e Ucrânia). O
eixo Moscovo-Pequim poderia, pelo contrário, adquirir uma substância
realmente geopolítica somente no momento em que os dois Países
conseguissem minar a hegemonia do dólar, substituindo-o por uma nova
moeda reconhecida pelos mercados, e redesenhassem os mecanismos do
sistema bancário e financeiro internacional. Trata-se, porém, de uma
eventualidade que, de momento, ainda está distante, tanto por razões
técnicas, quanto porque os Chineses se beneficiam muito da atual
estrutura geo-económica global.
O acordo entre a Rússia e a China é, no entanto, sintomático de uma
mudança gradual do centro de gravidade geopolítico em direcção ao Oriente
do Continente euro-asiático que deveria ser um sério convite à reflexão
para os que tem o peso das decisões políticas. A Rússia, descrita e
percebida sempre como uma ameaça, é um País europeu: embora o seu corpo
seja dividido entre Europa e Ásia, a sua cultura, a sua música, a sua
literatura e a sua história fazem dela a parte oriental da tradição europeia, como já foi o Império Bizantino. Mas, precisamente a sua
fisionomia territorial a torna ao mesmo tempo um eixo de ligação em direcção à Ásia. O tratado de Nerčinsk (1689), com o qual o império russo
dos Romanovs regulamentava os limites com o império chinês dos Qing, é o
primeiro acordo diplomático que um estado cristão assinou com a China.
As relações político-diplomáticas entre a Rússia e a China são,
portanto, muito antigas, e se os quatro mil quilómetros de fronteira que
eles compartilham são sempre um potencial de tensão, os dois Países se
relacionam hoje com proveito em diversos formatos internacionais: na já
citada SCO, nas reuniões dos Países emergentes BRICS, nos vértices do
APEC, o organismo de cooperação económica da Asia-Pacífico. Se a Europa
conseguisse melhorar as suas relações com Moscovo, teria também a sua
política com a China beneficiada. Contando com uma Rússia aliada, os
Europeus poderiam negociar mais facilmente o comércio com Pequim, serem
favorecidos nos investimentos industriais em vastas áreas do continente
euro-asiático, bem como se tornar mais incisivos na pressão diplomática
para a defesa da liberdade dos cristãos na China.
Por todas estas razões, o acordo russo-chinês não constitui uma
ameaça para a Europa. Certamente, porém, envergonha a diplomacia da UE,
que parece fazer de tudo para ficar inimiga de uma grande País vizinho,
fornecedor de energia confiável e importante parceiro comercial que a
história e a geografia tornam uma ponte diplomática e económica ideal
para lidar com as relações com a Ásia, especialmente em um mundo
globalizado. Por quanto tempo ainda as elites europeias continuarão a
definir-se parte de um aleatório "Ocidente", enquanto por um lado negam a
cada dia as próprias raízes histórico-culturais e por outro se mostram
incertos, omissos e contraditórios no custodiar e desenvolver os
próprios interesses económicos e estratégicos? (Trad.TS)
*
Dario Citati é Diretor do Programa de pesquisa “Eurasia” do Instituto
de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares (ISAG)
[www.istituto-geopolitica.eu] e editor da revista Geopolítica [www.geopolitica-rivista.org].
NOTAS:
(28 de Maio de 2014) © Innovative Media Inc.
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