Páginas

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Acordo energético China-Rússia: é hora de repensar o espaço e os interesses da Europa

O acordo entre Moscovo e Pequim pode deslocar o centro de gravidade económico global para o Oriente, mas não representa uma ameaça para a Europa, que, pelo contrário, poderia tirar lições para uma política com mais visão de futuro com o Leste


Roma, 28 de Maio de 2014 (Zenit.org) Dario Citati


No passado dia 20 de Maio, a Federação Russa e a República Popular da China assinaram um acordo de energia de importância histórica. Na presença dos Chefes de Estado, Vladimir Putin e Xi Jinping, os dirigentes da empresa russa Gazprom e da chinesa CNPC assinaram um contrato no valor de mais de 400 mil milhões de dólares, que prevê, para trinta anos, o fornecimento de gás russo para a China, por uma quantidade de 38 mil milhões de metros cúbicos por ano, com um crescimento estimado até os 60 mil milhões (1). Para Pequim, este acordo tem um valor importante no plano ambiental e da modernização económica, porque consentirá reduzir a utilização poluente do carvão; para Moscovo, trata-se sim de uma saída para os seus imensos recursos naturais, que confirmará ainda por décadas o sector energético como o vector principal da potência russa.

É importante lembrar que as negociações para chegar a este acordo duraram cerca de dez anos. A crise na Ucrânia e as sanções impostas à Rússia pelos EUA e UE aceleraram provavelmente a conclusão do contrato, mas em si mesmo é uma estratégia geo-económica que as duas potências estavam perseguindo há algum tempo, embora não sem dificuldades e mal-entendidos. Além disso, o início do fornecimento está previsto para 2018 e não exclui nenhum dos outros mercados de fornecimento do gás russo, incluindo o europeu, mas simplesmente os integra com um novo, diversificando as exportações de Moscovo.

Mesmo nesta circunstância, como tem acontecido cada vez mais frequentemente, no passado recente, deve-se notar que, infelizmente, muitos meios de comunicação europeus e norte-americanos tendem a representar a situação com a lógica da Guerra Fria, o que não se reflecte na realidade das coisas. Vários meios de comunicação começaram a enfatizar o evento com títulos como a Rússia-China: rumo a uma aliança contra o Oeste (2), sem ser convincentes ao explicar as razões.

Não se compreende, de fato, porque nunca um acordo energético entre dois Estados vizinhos, cujas negociações já acontecem há uma década, tenha que ter sido pensado “contra” alguém, especialmente quando um destes dois Países, a Rússia, foi recentemente atingida por sanções económicas, mas não adoptou até agora nenhuma medida de retaliação contra a Europa. No entanto, directamente ou implicitamente, a sensação que o leitor comum tem ao ouvir as notícias e ao ler os jornais é de que ter relações com Moscovo é extremamente arriscado, porque a Rússia seria um País isolado da civilização no plano político e pronto para deixar que os europeus se congelem por causa dos seus inconfessáveis interesses económicos.

O grande paradoxo, revelador da imprecisão analítica ou da má-fé desta russofobia assustadora, é que o espectro da Rússia tem agitado muito mais hoje do que no passado. Por meio século, quando a Rússia era a URSS e ameaçava realmente o Velho Continente por meio dos seus arsenais e as suas quintas colunas (os partidos comunistas da Europa ocidental), a sua confiabilidade como fornecedora de energia nunca criou problemas e se demonstrou capaz de ir além do confronto ideológico.

Hoje, porém, a Federação Russa é um País talvez com muitos problemas e contradições, mas ainda interessado em um processo de modernização económica, plenamente inserido no mercado global, recentemente integrado na OMC e com um nível de liberdade e perspectivas de desenvolvimento incomparáveis com relação ao passado soviético. Distanciando a Rússia de si, a Europa não trabalha pela sua auto-suficiência energética, mas, em vez disso, aumenta a sua dependência de outros fornecedores, especialmente dos Países muçulmanos do Norte da África e do Oriente Próximo, caracterizados por um nível muito maior de instabilidade interna.

Uma estratégia energética europeia que tivesse realmente um visão de futuro deveria agregar outras fontes ao abastecimento da Rússia, mas certamente não excluindo este último, que continua sendo o maior detentor de recursos naturais do planeta e, historicamente, o provedor mais seguro da Europa.

Do lado geopolítico, o acordo energético entre a Rússia e a China pode ser lido em paralelo com as negociações sobre o mercado transatlântico entre os Estados Unidos e Europa. Trata-se de um projecto com o qual Washington visa construir, talvez em 2015, uma zona de livre comércio com a UE que levanta muitos questionamentos sobre temas respectivos à protecção dos dados pessoais, a segurança alimentar e a tutela dos produtores locais na Europa (3). Estes dois acordos económicos, um que acaba de ser assinado (o russo-chinês), o outro no processo de problemática definição (o euro-americano), antes mesmo das efectivas repercussões económicas têm um papel importante na estratégia de “construção do inimigo” para influenciar a opinião pública. Poder-se-ia imaginar um cenário desse tipo: se fosse adiante o mercado transatlântico, mas os contrastes geopolíticos entre os Estados Unidos e Rússia tivessem que persistir, os meios de comunicação poderiam facilmente falar do eixo russo-chinês como do novo inimigo do "Ocidente".

São previsões válidas? No momento, a possibilidade concreta de que o acordo energético entre a Rússia e a China constitua o prelúdio da formação de um “bloco oriental” que vê Moscovo e Pequim contrapostos a Washington e Bruxelas parece muito difícil, por muitas razões. Em primeiro lugar, as duas potências sempre tiveram um relacionamento ambivalente, feito de cooperação e competição.

Na Ásia Central, por exemplo, elas disputam a influência sobre as antigas repúblicas soviéticas; a Sibéria, região rica e desabitada de uma Rússia em constante declínio demográfico, está, há muito tempo, no centro de uma invasão da população chinesa que preocupa bastante o Kremlin. Moscovo e Pequim são duas grandes potências vizinhas e, como tais, são chamadas a cooperar, fazendo complementários os respectivos interesses para não se prejudicarem mutuamente. A Organização da Cooperação de Shangai (SCO), fundada em 2001 com o objectivo de combater “os três males” (separatismo, extremismo, terrorismo), é a principal assembleia na qual os dois Países procuram regular tais questões, além, naturalmente, das relações bilaterais.

Outro factor que deve ser considerado é que o desenvolvimento da economia chinesa ainda está ligado duramente aos Estados Unidos, do qual, como se sabe, Pequim detém a maior parte do débito público. A China não tem, portanto, nenhum interesse oposto frontalmente à Europa e muito menos aos Estados Unidos, cujos mercados permanecem até mesmo fundamentais para a saída comercial e, ultimamente, como terreno de aquisição de terras estratégicas. Acrescente-se, finalmente que nas crises políticas e militares internacionais, a China mantém, desde sempre, um perfil bastante isolacionista, sem nunca impor um forte ponto de vista em nenhuma circunstância (assim tem sido para as invasões no Afeganistão, Iraque, Líbia, para as guerras civís na Síria e Ucrânia). O eixo Moscovo-Pequim poderia, pelo contrário, adquirir uma substância realmente geopolítica somente no momento em que os dois Países conseguissem minar a hegemonia do dólar, substituindo-o por uma nova moeda reconhecida pelos mercados, e redesenhassem os mecanismos do sistema bancário e financeiro internacional. Trata-se, porém, de uma eventualidade que, de momento, ainda está distante, tanto por razões técnicas, quanto porque os Chineses se beneficiam muito da atual estrutura geo-económica global.

O acordo entre a Rússia e a China é, no entanto, sintomático de uma mudança gradual do centro de gravidade geopolítico em direcção ao Oriente do Continente euro-asiático que deveria ser um sério convite à reflexão para os que tem o peso das decisões políticas. A Rússia, descrita e percebida sempre como uma ameaça, é um País europeu: embora o seu corpo seja dividido entre Europa e Ásia, a sua cultura, a sua música, a sua literatura e a sua história fazem dela a parte oriental da tradição europeia, como já foi o Império Bizantino. Mas, precisamente a sua fisionomia territorial a torna ao mesmo tempo um eixo de ligação em direcção à Ásia. O tratado de Nerčinsk (1689), com o qual o império russo dos Romanovs regulamentava os limites com o império chinês dos Qing, é o primeiro acordo diplomático que um estado cristão assinou com a China.

As relações político-diplomáticas entre a Rússia e a China são, portanto, muito antigas, e se os quatro mil quilómetros de fronteira que eles compartilham são sempre um potencial de tensão, os dois Países se relacionam hoje com proveito em diversos formatos internacionais: na já citada SCO, nas reuniões dos Países emergentes BRICS, nos vértices do APEC, o organismo de cooperação económica da Asia-Pacífico. Se a Europa conseguisse melhorar as suas relações com Moscovo, teria também a sua política com a China beneficiada. Contando com uma Rússia aliada, os Europeus poderiam negociar mais facilmente o comércio com Pequim, serem favorecidos nos investimentos industriais em vastas áreas do continente euro-asiático, bem como se tornar mais incisivos na pressão diplomática para a defesa da liberdade dos cristãos na China.

Por todas estas razões, o acordo russo-chinês não constitui uma ameaça para a Europa. Certamente, porém, envergonha a diplomacia da UE, que parece fazer de tudo para ficar inimiga de uma grande País vizinho, fornecedor de energia confiável e importante parceiro comercial que a história e a geografia tornam uma ponte diplomática e económica ideal para lidar com as relações com a Ásia, especialmente em um mundo globalizado. Por quanto tempo ainda as elites europeias continuarão a definir-se parte de um aleatório "Ocidente", enquanto por um lado negam a cada dia as próprias raízes histórico-culturais e por outro se mostram incertos, omissos e contraditórios no custodiar e desenvolver os próprios interesses económicos e estratégicos? (Trad.TS)
*
Dario Citati é Diretor do Programa de pesquisa “Eurasia” do Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares (ISAG) [www.istituto-geopolitica.eu] e editor da revista Geopolítica [www.geopolitica-rivista.org].

NOTAS:

Sem comentários:

Enviar um comentário