
Livro de Jorge Gálan
Em 2019, quando eu estava a trabalhar em Londres, ganhei o hábito de fazer o giro às livrarias que existem no centro da cidade, o que me levou a acumular no meu pequeno apartamento um número talvez pouco razoável de livros (veja-se muitos, e empilhados no chão porque estantes eram um desperdício de dinheiro que podia ser gasto em livros).
Foi assim que esbarrei com o November de Jorge Galán, numa livraria independente perto do British Museum. November na tradução inglesa, Noviembre no original espanhol, e seria Novembro em português caso o livro fosse traduzido. Li o prefácio na livraria antes de o comprar. Nele, o padre Ignacio Ellacuría, um dos mártires da Universidade Centro-Americana (UCA) [ver 7MARGENS], morto, sabe-se agora, pelo exército de El Salvador, acorda no seu quarto na residência partilhada com mais seis padres jesuítas. Ouve barulho lá fora, pensa com tristeza nos companheiros que vivem com ele e que não têm nada a ver com isto, levanta-se, passa a mão no cabelo, põe o roupão e sai. No corredor, perguntam-lhe o que se está a passar e ele diz: “Não se preocupem.” Para que serve preocuparem-se se não há nada que possam fazer?
Ellacuría não é a personagem principal deste livro, situado entre o romance e o jornalismo. Essa honra cabe a José Maria Tojeira, na altura provincial dos jesuítas na América Central, que tenta por meio de muitas ofuscações, mentiras, ameaças e violência, descobrir quem esteve por detrás do ataque à UCA. A outra personagem vital é Lucia Cerna, a única testemunha do ataque, que sabia que os jesuítas e as duas mulheres tinham sido mortos pelo exército e não pela FMLN, como o Governo salvadorenho afirmou inicialmente. Lucia foge para os Estados Unidos com a família, onde é intimidada pelo FBI. O batalhão envolvido no ataque à UCA tinha sido, afinal de contas, treinado pelas forças armadas norte-americanas.
Tal como Lucia, Jorge Galán também vive no exílio, obrigado a sair de El Salvador devido às ameaças de morte que se seguiram à publicação de Novembro. Galán faz uma corajosa tentativa de explicar o que Tojeira sabia, mas cujas provas concretas lhe escapavam: sim, foi o exército, com a conivência de altas patentes e com a alegada autorização do Governo da altura, presidido por Alfredo Cristiani (hoje em paradeiro incerto, mas com um mandado de captura por suspeita do seu envolvimento no massacre da UCA). Galán tenta também perceber porque estes homens, particularmente Ellacuría, que podiam ter sido professores em qualquer prestigiada universidade do mundo, decidiram ficar e morrer em El Salvador.
Ellacuría ensombra, então, este livro. Era ele o principal alvo. Os outros morreram para que não houvesse testemunhas. Ellacuría era uma figura mediática, ferozmente inteligente e articulado, que estava, no momento do seu assassinato, a tentar estabelecer negociações de paz entre o Governo e a FMLN. Ellacuría era também famoso por ser um importante teólogo da Teologia da Libertação. O seu compromisso era com o “povo crucificado” da América Latina, isto é, com os explorados, os pobres, os indígenas, os desaparecidos, os massacrados por décadas de violência estatal.
É também na Teologia da Libertação que se encontra o motivo pelo qual Ellacuría não abandona El Salvador. A sua Fé exigia-lhe a coragem para impulsionar negociações de paz, para se sentar com fascistas que o queriam morto, e a capacidade para pensar um futuro diferente. Para os seus detractores em El Salvador, Ellacuría era um marxista, um “agitador basco”. Estavam errados; Ellacuría era somente um homem com uma desmedida fé na razão. Numa entrevista citada no livro, Ellacuría diz que era possível que o matassem, mas agora que o conflito estava perto de uma resolução pacífica, “seria irracional fazê-lo, eu não acredito que o façam.” Ele acreditava que o diálogo, a negociação – a razão – podiam acabar com anos de guerra civil para assim abrirem caminho a uma sociedade mais igualitária e justa.
No prefácio já mencionado, ao ser encaminhado para o exterior onde o vão matar, um dos padres diz aos seus assassinos, “isto é uma injustiça”. É certo. As injustiças são sempre desprovidas de razão. A justiça é sempre razoável. Pela razão de Ellacuría, pelos seus companheiros, por Elba e Celina Ramos, e pela escrita lúcida de Jorge Galán, este livro devia ser traduzido e lido uma e outra vez.
Daniela Azevedo estudou História e Humanidades Digitais. Pode ser encontrada na página librarianofburgos no Instagram.
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