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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Padres e leigos ortodoxos russos insurgem-se contra a guerra e contra Cirilo

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Documento tornado público

 | 05/02/2025


O dia de Natal na Rússia (7 de janeiro) registou, este ano, um gesto profético: o ‘nascimento’ de uma tomada de posição e apelo apresentado por um grupo de membros do clero e leigos da Igreja Ortodoxa Russa (IOR), de que só nos últimos dias se teve conhecimento, na qual se rejeita a guerra e se faz uma contundente crítica da orientação adotada pelo Patriarca Cirilo, de Moscovo. “Não temos o direito de permanecer em silêncio”, dizem logo a abrir.

Compreensivelmente, os autores “sentiram-se obrigados a abster-se de dar qualquer indicação de autoria”. Dizem apenas que são “filhos da Igreja Ortodoxa Russa”; a maioria deles vive na Rússia, mas estão também espalhados por diferentes países, sob outras jurisdições canónicas; e todos “rejeitam a guerra”. “Qualquer pessoa que partilhe as teses aqui contidas e esteja disposta a transmiti-las a outros, seja oralmente ou por escrito, pública ou privadamente, pode considerar-se participante deste ato de confissão”, acrescentam.

As teses ou argumentos são oito e todas são referenciadas a Jesus e aos valores consagrados nos Evangelhos. De resto, abrem com uma afirmação de fé: “acreditamos e confessamos que todos nós, independentemente das circunstâncias terrenas e das exigências dos governantes terrenos, somos chamados a testemunhar os ensinamentos de Jesus Cristo diante do mundo e a rejeitar sempre o que é incompatível com o Evangelho. Nenhum objetivo ou valor terreno pode ser colocado pelos cristãos acima ou no lugar da verdade revelada nos ensinamentos, na vida e na pessoa de Jesus Cristo”.

Na impossibilidade de acedermos diretamente ao texto em russo, recorremos à tradução autorizada feita para alemão e publicada pelo Serviço Noticioso sobre as Igrejas Orientais e do Sudeste da Europa, financiado pela ONG católica Renovabis. Dada a extensão do texto (mais de 3.500 palavras), partilharemos cada uma das teses, sublinhando o sentido e alcance de cada uma.

  1. “Sobre DeusSobre o mandamento ‘Não usarás em vão o nome do Senhor teu Deus’”

Recorrendo ao Credo de Niceia (Deus, ‘o Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis’), os subscritores verberam o uso do nome de Deus para fins políticos, dizendo:

“O que chama a atenção é a frivolidade com que não só os políticos e jornalistas, mas também os ministros da igreja usam o nome de Deus, na sua retórica, e destemidamente atribuem e ditam ao Criador o lado de que Ele deve estar nos conflitos terrestres e qual dos governantes terrenos Ele deveria apoiar”.

  1. Sobre o Reino de DeusSobre “a inadmissibilidade de misturar o que é ‘de Deus’ e ‘do imperador’, bem como a inadmissibilidade de transformar a Igreja num instrumento de governantes terrenos”.

Os clérigos e leigos autores deste credo começam por reconhecer que o estado e as instituições que sustentam a lei e a ordem neste mundo são “necessários e inevitáveis”, visto que “criam as condições para uma vida normal em sociedade, reprimindo a agressão humana e o crime” e “impedindo que aqueles que praticam o mal transformem a Terra num inferno”. Mas … “a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Por isso, defendem, é “incompatível com a fidelidade a Cristo (…) uma situação em que a Igreja se torna um departamento ideológico do aparelho estatal, que atua como um ‘suporte’ (um termo frequentemente usado pela nomenklatura política na Rússia) para satisfazer as necessidades políticas de um regime particular”.

  1. Sobre a dignidade humanasobre a suposta “heresia do culto à pessoa” e a inadmissibilidade do abuso da pessoa humana como produto de consumo

O ser humano foi criado “à imagem de Deus”, como se lê no Génesis. Por outro lado, é para o bem das pessoas que existem normas sociais ou mandamentos religiosos e não o contrário. Por conseguinte, acentua o documento em referência, para os discípulos de Cristo, “o ser humano está acima da nação, do estado e do partido – e isso não é uma ‘heresia global de adoração humana’, mas uma consequência do ensinamento cristão de que o ser humano é a imagem de Deus.

Também por isso, “o uso indevido do ser humano como instrumento, como uma peça de engrenagem ou parafuso, como um consumível para o Estado ou outras instituições terrenas é incompatível com os ensinamentos de Cristo”.

  1. Sobre a igualdade das nações perante Deus e a inadmissibilidade da auto-glorificação nacional

Recordando a Carta aos Colossenses (em que “já não há grego nem judeu…”), os membros da IOR entendem que qualquer subalternização ou menorização de um povo e exaltação de outro ou qualquer forma de messianismo ou auto-glorificação nacional “é incompatível com o ensinamento de Cristo”, especialmente quando, “sob o lema ‘Deus está connosco!’, se atribui a um povo o direito decidir o destino de outros povos”.

E, por isso, não aceitam que valores e significados cristãos “estejam a ser impostos a uma agenda geopolítica, uma ideologia que substitui a fé em Cristo pela fé no ‘mundo russo’, no destino especial do povo russo e do Estado russo”. “Tal distorção, fazem notar, reduz Deus a uma divindade nacional, estreita a Ortodoxia a uma religião nacional russa e a um dos aspetos da autoconsciência nacional”. Além disso, “destrói a doutrina do caráter universal da Igreja e leva a uma rutura com outras Igrejas Ortodoxas locais”.

  1. Sobre viver segundo os mandamentos de Cristo e substituí-los pela “luta pelos valores tradicionais”

Os cristãos são chamados a testemunhar com suas próprias vidas os ensinamentos de Cristo, mas não são chamados, recordam os padres e leigos russos, a “impor valores – sejam eles morais, familiares, domésticos, políticos ou religiosos – aos “estranhos”. Nesta linha, denunciam o facto de se estar a impor “valores tradicionais …através da coerção e da perseguição legal, de leis repressivas e de denúncias”. O que nada mais é do que “uma tentativa de justificar a perda de valores morais verdadeiramente cristãos como o amor, a liberdade, a compaixão e a misericórdia na vida interior da própria Igreja”.

  1. Sobre o amor cristão ao próximo e a sua substituição pela pregação da violência e da “guerra santa”

“Tudo o que vós quereis que as pessoas vos façam, fazei-o também a elas! Nisto consistem a lei e os profetas”, recordam os autores desta tomada de posição, para denunciar pregações e pregadores que enaltecem a violência.

Mesmo quando a violência possa ser aceitável, quando é para evitar uma violência maior, mesmo aí não deixa de ser um mal, recordam, para afirmar que “qualquer pregação que glorifique a violência, seja ela política ou social, pública ou doméstica, é incompatível com os ensinamentos de Cristo”. Tal como o é “declarar uma guerra como ‘santa’…, mesmo que seja uma guerra defensiva. Especialmente se for uma guerra de agressão”.

  1. Sobre a Igreja de CristoSobre a “o poder vertical” e o esquecimento do princípio sinodal como distorções da vida da Igreja

Tomando o que diz Mateus (Mt 20: 25-27), sobre o poder como serviço aos irmãos enquanto caraterística das comunidades cristãs, os membros da IOR apontam: “nem a exaltação dos superiores nem a humilhação dos subordinados, nem a identificação da Igreja com o clero, que degrada os leigos, nem a transformação da hierarquia espiritual num ‘poder vertical’ burocrático (conceito central também na doutrina política da nomenklatura na Rússia, nota do tradutor)  – nada disso é compatível com os ensinamentos de Cristo”.

Denunciam, por isso, algo que é “inaceitável para a tradição ortodoxa”: fazer do chefe da Igreja um “autocrata eclesiástico” como o Papa Romano no Ocidente medieval, e não respeitar o princípio da sinodalidade “nem substantivamente nem pelo menos formalmente, quando nem mesmo os sínodos dos bispos prescritos pelo Estatuto da Igreja são convocados; quando as decisões mais importantes para a vida da igreja são tomadas somente pelo chefe da igreja; e quando a oposição dos clérigos às ações, palavras e políticas de seus superiores é equiparada a perjúrio e resulta em suspensão ou remoção do cargo (uma punição que o direito canónico prevê apenas para as ofensas mais graves dos clérigos)”.

  1. Sobre o ministério da reconciliação como verdadeira missão social e política da Igreja

Os “Fundamentos da Doutrina Social da Igreja Ortodoxa Russa”, que foram adotados pelo Sínodo dos Bispos [do Patriarcado de Moscovo] em 2000 são chamados como contributo à reflexão sobre o papel pacificador e de reconciliação da Igreja Ortodoxa, perante divergências, contradições e lutas políticas. Essa doutrina “tolera várias convicções políticas entre o episcopado, o clero e os leigos, com exceção daquelas que obviamente levam a ações que contradizem a doutrina ortodoxa da fé e as normas morais da tradição da Igreja”.

Porém, “a Igreja não pode servir de mediadora entre diferentes forças políticas se apoiar explicitamente uma delas”; ou se os seus representantes “incitam ao ódio contra outros povos e países em vez de pregar a paz”, denunciam os autores da tomada de posição.

“A tentativa de usar indevidamente a oração da igreja como um instrumento para testar a lealdade aos governantes terrenos, a suspensão e remoção do cargo por causa de orações pela paz e reconciliação – isso nada mais é do que a perseguição de cristãos por causa de sua lealdade à palavra de Cristo”, advertem, em referência a casos concretos sucedidos na Rússia, nos primeiros meses a seguir à invasão da Ucrânia.

(Foto de destaque: Patriarca Cirilo nas Vésperas da Páscoa na Catedral de Cristo Salvador. © Oleg Varov | O Serviço de Imprensa do Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia)



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