
Em carta dirigida aos bispos dos EUA
“A grande crise que tem vindo a ocorrer nos Estados Unidos com o início de um programa de deportações em massa” de migrantes é o motivo para uma carta que o Papa Francisco acaba de dirigir aos bispos daquele país, na qual tece fortes críticas à política seguida pelo presidente Trump, ao mesmo tempo que corrige uma pretensa “teologia da deportação” que havia sido tentada pelo vice-presidente e neo-convertido ao catolicismo, J. D. Vance.
O Papa, que diz ter vindo a “seguir de perto” esta deportação de centenas de milhares de migrantes, diz reconhecer “o direito de uma nação de se defender e manter as comunidades seguras daqueles que cometeram crimes violentos ou graves”, mas afirma igualmente que “a consciência corretamente formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que, tacita ou explicitamente, identifique a condição ilegal de alguns migrantes com a criminalidade”.
“O ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram a sua terra por razões de pobreza extrema, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do meio ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade e desamparo”, escreve Francisco.

‘ “O ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram a sua terra por razões de pobreza extrema, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do meio ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade e desamparo”, escreve Francisco.’ Foto: Vatican News
Entrando no desenvolvimento desta posição, o Pontífice faz notar que “o tratamento digno que todas as pessoas merecem, especialmente os mais pobres e marginalizados” é que constitui o verdadeiro teste do um Estado de direito. Isso passa, segundo a missiva aos bispos, por “acolher, proteger, promover e integrar os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis”, no quadro do bem comum que cabe à sociedade e ao governo promover, “com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos”.
Ora isso, adianta Francisco, “não pode ocorrer através do privilégio de alguns e do sacrifício de outros”, avisando, de seguida: “aquilo que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e terminará mal”.
O Papa recorda que Jesus foi, ele também, um migrante e um refugiado, quando os pais decidiram pôr-se em fuga para o Egito, para responder a uma ameaça à vida do menino Jesus, vinda da parte do rei Herodes. Sublinha, por outro lado, que Jesus educa os que O seguem no “reconhecimento permanente da dignidade de cada ser humano, sem exceção” e neste quadro observa:
“O valor mais decisivo que a pessoa possui ultrapassa e sustenta qualquer outra consideração jurídica que possa ser feita para regular a vida em sociedade. Assim, todos os fiéis cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais, e não o contrário”.
Papa: a “ordem do amor” está na parábola do Bom Samaritano

‘ “O verdadeiro ordo amoris [ordem do amor] que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do “Bom Samaritano.” ‘ Foto: Átrio dos Gentios 2020, Brasil, Ilustração O Bom Samaritano, de Caio Beltrão
Francisco reconhece “os valiosos esforços” dos “queridos irmãos bispos dos Estados Unidos, ao trabalharem de perto com migrantes e refugiados, proclamando Jesus Cristo e promovendo os direitos humanos fundamentais”. Ao mesmo tempo, exorta “todos os fiéis da Igreja Católica, e todos os homens e mulheres de boa vontade, a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário” aos migrantes e refugiados, lembrando que todos são “chamados a viver em solidariedade e fraternidade; a construir pontes que aproximem, cada vez mais; a evitar muros de ignomínia; e a aprender a dar a vida, como Jesus Cristo a deu para a salvação de todos”.
Recorde-se que o vice-presidente dos EUA tinha reagido às criticas e preocupações dos bispos católicos à política de deportação forçada dos migrantes não documentados, sugerindo que elas eram interesseiras, motivadas pelo dinheiro que o governo norte-americano canalizava para a ação social de acolhimento e integração dos migrantes. Ao mesmo tempo, Vance aludiu a um ordo amoris (ordem do amor) que teria uma hierarquia de prioridades (uma ordem) que seria esta: família, vizinhos, concidadãos, e, no fim, o resto das pessoas. Francisco vem dizer que a ordem é outra, quando escreve, na carta aos bispos:
“A pessoa humana é um sujeito com dignidade que, através da relação constitutiva com todos, especialmente com os mais pobres, pode gradualmente amadurecer na sua identidade e vocação. O verdadeiro ordo amoris [ordem do amor] que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do “Bom Samaritano” (cf. Lc 10,25-37), ou seja, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção”.
Ele que trate de consertar a Igreja Católica, responde colaborador de Trump
Thomas Homan, que foi encarregado do programa de deportação de migrantes indocumentados, foi quem respondeu aos considerandos da carta do Papa aos bispos dos EUA, dizendo que tinha “palavras duras para o Papa”: “O Papa deve consertar a Igreja Católica e deixar a questão das fronteiras para nós”, disse ele, sem mais explicações.
Homan acrescentou que o Papa “tem uma parede ao redor do Vaticano … para proteger seu povo e ele mesmo, mas não podemos ter um muro nos Estados Unidos”.
Sugerindo que Francisco se está a meter em matéria que não lhe compete, o responsável norte-americano disse ele se deveria “concentrar no seu trabalho”. “Estou a dizer isso como católico de toda a vida – fui batizado católico, a minha primeira comunhão como católico e confirmação como católico”.
Recorde-se que Homan foi, no primeiro mandato de Trump, diretor interino de Imigração e Fiscalização Aduaneira, responsável por manter crianças de imigrantes presas em condições precárias, separadas das suas famílias.

“A consciência corretamente formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que, tacitamente ou explicitamente, identifique a condição ilegal de alguns migrantes com a criminalidade”. Foto: Vatican News
Carta do Papa Francisco aos Bispos dos Estados Unidos, sobre a deportação de migrantes
(Texto integral)
Caros Irmãos no Episcopado,
Escrevo hoje para vos dirigir algumas palavras nestes momentos delicados que estão a viver como Pastores do Povo de Deus que caminha nos Estados Unidos da América.
- A jornada da escravidão à liberdade que o Povo de Israel percorreu, conforme narrado no Livro do Êxodo, convida-nos a olhar para a realidade do nosso tempo, tão claramente marcada pelo fenómeno da migração, como um momento decisivo na história para reafirmar não apenas a nossa fé num Deus sempre próximo, encarnado, migrante e refugiado, mas também a dignidade infinita e transcendente de cada pessoa humana.[1]
- Estas palavras com as quais começo não são uma construção artificial. Mesmo um exame superficial da Doutrina Social da Igreja mostra com ênfase que Jesus Cristo é o verdadeiro Emanuel (cf. Mt 1,23); Ele não viveu à margem da difícil experiência de ser expulso de sua própria terra devido a um risco iminente para a sua vida, e da experiência de ter que se refugiar numa sociedade e cultura estranhas à sua. O Filho de Deus, ao fazer-se homem, também escolheu viver o drama da imigração. Gosto de recordar, entre outras coisas, as palavras com as quais o Papa Pio XII iniciou sua Constituição Apostólica sobre o Cuidado dos Migrantes, considerada a “Magna Carta” do pensamento da Igreja sobre a migração: “A família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egito e refugiados lá para escapar da ira de um rei ímpio, são o modelo, o exemplo e o consolo dos emigrantes e peregrinos de todas as épocas e países, de todos os refugiados de qualquer condição, os quais, pressionados pela perseguição ou pela necessidade, são forçados a deixar sua pátria, a sua amada família e seus queridos amigos para se dirigir a terras estrangeiras.”[2]
- Da mesma forma, Jesus Cristo, amando todos com um amor universal, educa-nos no reconhecimento permanente da dignidade de cada ser humano, sem exceção. De facto, quando falamos de “dignidade infinita e transcendente”, queremos enfatizar que o valor mais decisivo possuído pela pessoa humana ultrapassa e sustenta qualquer outra consideração jurídica que possa ser feita para regular a vida em sociedade. Assim, todos os fiéis cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais, e não o contrário.
- Tenho acompanhado de perto a grande crise que tem vindo a ocorrer nos Estados Unidos com o início de um programa de deportações em massa. A consciência corretamente formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que, tacitamente ou explicitamente, identifique a condição ilegal de alguns migrantes com a criminalidade. Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer o direito de uma nação de se defender e manter as comunidades seguras daqueles que cometeram crimes violentos ou graves enquanto estavam no país ou antes de chegar. Dito isso, o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram a sua terra por razões de pobreza extrema, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do meio ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade e desamparo.
- Esta não é uma questão menor: um verdadeiro Estado de Direito é verificado precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem, especialmente os mais pobres e marginalizados. O verdadeiro bem comum é promovido quando a sociedade e o governo, com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos — como tenho afirmado em várias ocasiões — acolhem, protegem, promovem e integram os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis. Isso não impede o desenvolvimento de uma política que regule a migração ordenada e legal. No entanto, esse desenvolvimento não pode ocorrer através do privilégio de alguns e do sacrifício de outros. O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e terminará mal.
- Os cristãos sabem muito bem que é apenas afirmando a dignidade infinita de todos que a nossa própria identidade como pessoas e como comunidades atinge sua maturidade. O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos. Por outras palavras: a pessoa humana não é um mero indivíduo, relativamente expansivo, com alguns sentimentos filantrópicos! A pessoa humana é um sujeito com dignidade que, através da relação constitutiva com todos, especialmente com os mais pobres, pode gradualmente amadurecer na sua identidade e vocação. O verdadeiro ordo amoris [ordem do amor] que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do “Bom Samaritano” (cf. Lc 10,25-37), ou seja, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção.[3]
- Mas preocupar-se com a identidade pessoal, comunitária ou nacional, à parte dessas considerações, facilmente introduz um critério ideológico que distorce a vida social e impõe a vontade do mais forte como critério de verdade.
- Reconheço os valiosos esforços de vocês, queridos irmãos bispos dos Estados Unidos, ao trabalharem de perto com migrantes e refugiados, proclamando Jesus Cristo e promovendo os direitos humanos fundamentais. Deus recompensará ricamente tudo o que fizerem pela proteção e defesa daqueles que são considerados menos valiosos, menos importantes ou menos humanos!
- Exorto todos os fiéis da Igreja Católica, e todos os homens e mulheres de boa vontade, a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário a nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. Com caridade e clareza, todos somos chamados a viver em solidariedade e fraternidade, a construir pontes que nos aproximem cada vez mais, a evitar muros de ignomínia e a aprender a dar a vida como Jesus Cristo a deu para a salvação de todos.
- Peçamos a Nossa Senhora de Guadalupe que proteja as pessoas e famílias que vivem com medo ou dor devido à migração e/ou deportação. Que a “Virgem Morena”, que soube reconciliar povos quando estavam em inimizade, nos conceda a todos reencontrarmo-nos como irmãos, dentro do seu abraço, e assim dar um passo adiante na construção de uma sociedade mais fraterna, inclusiva e respeitosa da dignidade de todos.
Fraternalmente, Francisco
Vaticano, 10 de fevereiro de 2025
[1] Cf. DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Dignitas infinita sobre a dignidade humana, 2 de abril de 2024. [2] PIO XII, Constituição Apostólica Exsul Familia, 1º de agosto de 1952: “Exsul Familia Nazarethana Iesus, Maria, Ioseph, cum ad Aegyptum emigrans tum in Aegypto profuga impii regis iram aufugiens, typus, exemplar et praesidium exstat omnium quorumlibet temporum et locorum emigrantium, peregrinorum ac profugorum omne genus, qui, vel metu persecutionum vel egestate compulsi, patrium locum suavesque parentes et propinquos ac dulces amicos derelinquere coguntur et aliena petere.” [3] Cf. FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli tutti, 3 de outubro de 2020.
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