Desde então a sua vida e a vida dos pais e irmãos mudara para sempre, assim como a sua postura ante as dificuldades e a própria forma de encarar o mundo à sua volta.
Quando o irmão mais novo lhe mostrou o papel que às escondidas andava a ser entregue aos miúdos perto da escola, Gilberto não teve qualquer dúvida que tinha de intervir sem mais demoras.
Não quis preocupar os pais, nada disse ao irmão, mas sentado na cadeira de rodas motorizada, no dia seguinte, pôs-se a caminho da escola.
O ambiente na escola estava estranho. Alguns professores tinham-se apercebido já de que alguma coisa se passava… mas não sabiam exatamente o quê. Os miúdos de 8º e 9º anos faziam grupinhos nos intervalos, estranhamente conversavam com alguns alunos mais velhos do Secundário, mas disfarçavam quando algum adulto se aproximava, e pareciam querer encobrir qualquer coisa. Os professores, na previsão da data que se aproximava, já tinham procurado, duas semanas antes, dissuadir os alunos de quaisquer ideias de grandes celebrações de ‘Halloween’ - que já tinham um historial de acontecimentos preocupantes para os pais mais atentos! Para isso, tinham convidado os alunos entre os 13-15 anos a inscreverem- se numa pacífica excursão de três dias ao sul do país, com alguns professores. Outros alunos mais novos iam ter atividades de escuteiros, batendo às portas a pedir ‘pão, por Deus’ e outros ainda, preparavam um desfile, mascarados de ‘santos’ e um inofensivo jantar com partilha de guloseimas recebidas enquanto percorriam as ruas.
Porém, o irmão mais novo de Gilberto, que mudara para aquela escola havia pouco tempo, mostrara-lhe o folheto recebido, bem longe da vista do porteiro, mas perto da escola… e o folheto dizia assim:
‘Vem viver uma Grande Aventura! Atreve-te a uma inesquecível prova de coragem! Um ‘Halloween’ como nunca viste, nem experimentaste! Aparece no dia 31 de outubro, às 21.30, junto ao muro atrás do cemitério! Traz fato de treino, dez euros para pagar a entrada, uma faca, fósforos e velas… não contes nada aos teus pais, nem aos teus professores! terás direito a uma garrafa de vinho e uma máscara… vais viver a grande experiência da tua vida, uma prova de coragem só para os mais valentes, sem medo, entre os 13-15 anos! Esperamos por ti!’
Quando Gilberto passou o portão da escola, logo o segurança lhe perguntou ao que vinha e ele pediu para falar com algum membro da Direção com urgência. O segurança ajudou-o a sair do motociclo e acompanhou-o à porta da Direção, pedindo-lhe que aguardasse ali sentado num banco.
Pouco depois era recebido por um professor jovem no gabinete da Direção.
Gilberto apresentou-se como antigo aluno, agora engenheiro informático, mostrou-lhe o folheto que o irmão recebera, e contou a sua própria história. Depois, pediu ao professor que falasse com seus colegas de Direção e, se concordassem, sugeriu que marcassem um dia, tão rápido quanto possível, para ele vir falar a todos os alunos, no auditório. Apenas com uma condição: não falaria no folheto que o irmão lhe tinha mostrado… para não o prejudicar entre colegas…
O professor logo concordou e lhe pediu sem hesitação que voltasse na tarde seguinte, para falar a todos os alunos… e Gilberto voltou.
O auditório da escola encheu-se para o ouvir. Os alunos de todo o Secundário e dos 7º, 8º e 9º anos estavam ali presentes, sem saberem exatamente ao que iam. Também vários professores quiseram comparecer.
Gilberto, apoiado em duas muletas, caminhou com dificuldade e com ajuda do diretor subiu ao estrado e sentou-se, à mesa. Olhando os alunos de frente, em silêncio, tirou os grandes óculos escuros, o boné de pala, e a prótese da perna, pousando tudo sobre a secretária… para espanto geral. Ouviram-se algumas exclamações de surpresa… mas logo se instalou um silêncio absoluto. O irmão mais novo, também ele surpreendido pela vinda de Gilberto, sem querer que percebessem o parentesco, sentara-se junto de alguns colegas na ponta de um banco.
E Gilberto começou a falar, com uma voz arrastada.
‘- Olá! Boa tarde a todos! Chamo-me Gilberto Sousa, tenho 25 anos, sou engenheiro informático, estudei nesta mesma escola e estou aqui hoje para vos contar a minha história…
Devem estar curiosos… sim, como veem, perdi um olho, tenho esta enorme cicatriz na cabeça, o crânio assim um tanto amachucado, metido para dentro, e perdi uma perna, por isso uso esta prótese e duas muletas…
Tudo isto me aconteceu por causa de um acidente, quando eu tinha 15 anos e era aluno desta escola como vocês, há dez anos atrás…’
Alunos e professores, todos estavam suspensos das palavras de Gilberto. E continuou:
‘… quando eu tinha 14-15 anos, entrei numa fase crítica, a adolescência: não me interessava nada estudar a maioria das matérias, só gostava de Matemática e Informática; arranjei uns amigos mais velhos, que pareciam dar-me atenção, o que muito me agradava, e me desafiavam para uns copos, tabaco, e outras coisas, e comecei a baixar o rendimento na escola; mentia muitas vezes aos meus pais, e fazia disparates em grupo, sempre que saía com eles à noite. Lembro-me que várias vezes fiz, o que chamávamos provas de coragem, e pus muitas vezes, estupidamente, a minha vida em perigo… e a vida de outros…
Acontecia que os meus pais trabalhavam por turnos, andavam muito cansados e preocupados com a doença grave do meu avô que vivia conosco, ligavam mais aos meus irmãos mais novos e não se apercebiam que eu estava a andar por maus caminhos; durante vários meses, eu saía de casa às escondidas e tirava-lhes algum dinheiro para as minhas aventuras… uma noite, era o dia 31 de outubro, apareceu-me um rapaz desconhecido na rua a desafiar-me e aos meus amigos, para termos uma aventura no cemitério, que ia ser uma noite fantástica, diferente, inesquecível… ainda pensei que seria melhor não me meter naquilo… o tal meu avô, que vivia conosco e de quem eu gostava imenso, tinha morrido havia pouco tempo, estava ali enterrado, e algo me dizia cá dentro que ele não iria aprovar aventuras no cemitério, pois devia respeitar os mortos… mas a pressão dos meus amigos foi mais forte e à meia-noite, saí mesmo de casa, muito excitado, sem que os meus pais notassem, e apareci...’
No grande auditório não se ouvia nem uma mosca. Gilberto bebeu um pouco de água, olhou intensamente para os que estavam nas primeiras filas e continuou…
‘… éramos uns cinco; em silêncio, saltámos o muro do cemitério, que não era muito alto e fomos atrás do nosso novo amigo, que levava uma lanterna e nos mostrava o caminho entre as sepulturas. Só se ouvia o piar de um mocho à distância. Havia luar. Aquilo metia mesmo medo… Não se via ninguém, não havia guardas, o portão estava fechado, e dirigimo-nos para um extremo onde estava um jazigo enorme com as portas abertas, como que uma grande casa abandonada à nossa espera. Tinha um altar com um pano preto e estavam lá dentro duas outras pessoas com uns capuzes que lhes tapavam o rosto... dos lados havia prateleiras com fotos e jazigos velhos. O cheiro era horrível. Eles começaram a acender velas e a fazer uma espécie de rezas estranhas, uma lengalenga a invocar espíritos, dando voltas ao altar e mandavam-nos repetir aquelas palavras sem sentido… deram-nos uns copos com vinho, bebemos vários e comecei a ficar estonteado. De repente, no meio do escuro, vi-os abrir um saco, tirar um vulto que esperneava e percebi que iam matar um gato que miava aflitivamente; era suposto todos participarmos… segundo as instruções que nos iam dando; fiquei apavorado, senti uma tremenda vontade de vomitar e fugi a correr… outro dos meus amigos fugiu também… ainda ouvi alguns a chamar ’Gilberto, Gilberto, ó pá, não sejas medricas…’, mas corri às cegas, tropecei, levantei-me e sem saber como, lá consegui chegar a um dos muros do cemitério… tentei saltar uma, duas vezes e caí, estava muito tonto, voltei a tentar, saltei o muro e sei que rebolei para a estrada… do resto nada me lembro… só sei o que me contaram depois… fui atropelado por um carro que circulava a grande velocidade naquela estrada mal iluminada, onde àquela hora não se esperava que estivesse alguém caído… o meu amigo, que também vinha a fugir como eu, é que deu conta de tudo… o condutor e ele chamaram uma ambulância… e o resto já vocês perceberam… sim, parece que os outros miúdos mais os tais vultos estranhos fugiram todos ao ouvir ambulâncias; os meus pais, coitados, foram avisados e chamados ao hospital, em grande aflição; fiquei em coma bastante tempo, fui operado três vezes no espaço de quinze dias… fiquei ali internado seis meses, depois outros internamentos para fisioterapias, reaprendizagem do andar, novas operações… mas hoje sinto que apesar de todo o sofrimento, cresci e amadureci tanto que a minha vida faz sentido, sobretudo se puder ajudar-vos a todos vocês para que percebam que há erros e brincadeiras na vida que se pagam muito caro… sei que estou vivo por milagre! Fiz sofrer muitíssimo aos meus pais e irmãos… arrependi-me brutalmente, fiquei na fossa… mas com ajuda da minha família, dos médicos e enfermeiros, consegui levantar-me, voltar a estudar, fiz o resto do liceu em casa, e consegui lutar para tirar um curso… e pronto, acho que não tenho mais nada para vos dizer… já perceberam certamente, que todos os anos quando se aproxima esta estupidez do ‘Halloween’, tudo isto me aparece na memória com muita nitidez… Hoje, para mim, é claríssimo, que uma coisa é ter fé, acreditar em Deus e numa vida para além desta, rezar aos santos e respeitar os mortos, e outra coisa bem diferente é, por brincadeira, ou mesmo malvadez, ou por crenças ignorantes e sem sentido, andarmos por aí metidos em bruxarias e superstições…’
Ainda houve um tempo para perguntas e respostas, mas ninguém parecia ter dúvidas… por fim, todos se levantaram para aplaudir Gilberto longamente.
Do folheto ninguém falou, mas alguns alunos cochichavam entre si.
À saída da escola, vários professores e alunos quiseram cumprimentar e agradecer a Gilberto. No fim da fila, o irmão mais novo aproximou-se dele, deu-lhe um grande abraço e agradeceu-lhe também, dizendo que tinha muito orgulho em ser seu irmão…
Fátima Fonseca |
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