Estava a caminho da Redação quando nosso editor me ligou. Podes tirar umas fotos na frente da delegacia? Há um protesto pela morte de um rapaz e precisamos de fotos da manifestação ... O tema não nos encanta, mas um veículo de comunicação precisa noticiá-lo se pretende ser um fotógrafo da realidade e não um pintor dela. Alguns minutos depois providenciei o material solicitado e entrevistei a delegada, que gentilmente respondeu meia dúzia de perguntas que a ela dirigi. A versão oficial era simples: policiais civis foram cumprir um mandado de prisão e o procurado reagiu, atracando-se com os representantes da lei. No entrevero, o acusado levou a mão às costas, como quem sacaria uma arma. Foi alvejado e socorrido, mas não resistiu.
Algumas noites frias depois deste ocorrido fiquei a observar um pedaço de lenha a queimar na lareira. Suavemente curvo, moldado pelo fogo, assumira o formato de uma espinha dorsal. Anéis irregulares, avermelhados de calor, dividiam como que vértebras de um animal incandescente. Acho que era um galho de timbaúva, cuja madeira aliás não figura entre as mais requisitadas para estas fornalhas caseiras que amenizam os invernos. Fiquei a olhar o fogo, que seduz e hipnotiza os sentidos. Sentia a onda de calor que invadia a peça e lembrei do episódio, cujo epitáfio bem poderia ser “Aqui jaz uma sociedade em ruínas”.
Quando entreguei as fotos e vídeos ao editor, de pronto me perguntou qual era o nome da vítima. Respondi que não perguntara, confessando uma heresia jornalística de caso pensado. Não pude fazer diferente. Sem ceder à pieguice e muito menos à demagogia pegajosa, observara sem pressa as pessoas que protestavam, desafiando o poder de polícia ali presente, escrachando tanto policiais civis quanto fardados, lançando sobre eles palavrões e desconsolos. Eram todos iguais, irmãos que não se reconhecem como tais numa sociedade dividida. A bala já ceifara uma vida. O rapaz optara pelo crime, traficando entorpecentes e portanto ajudara a sepultar trajetórias, inclusive a sua. Não quis saber seu nome, nem corri atrás de uma foto sua.
Era uma gente pobre aquela que vociferava sua dor e impotência. Pobre e despreparada para a vida num mundo cada vez mais exigente, ao qual serve com seus limites culturais. Limites tão constrangedores que deveriam envergonhar todos os administradores públicos do país. Dias depois escutei uns e outros que se regozijaram com a morte. Defendem que é preciso eliminar muitos mais. É claro que não me alinho entre estes, ainda que também não esteja disposto à leniência com o crime, típica de uma sociedade em que reinam a indiferença e nenhuma vontade efetiva para combater os males que a sufocam. Aumenta a criminalidade? Repressão nela, com mais gastos. E assim caminhamos para o nada, com um discurso falido há décadas.
Já vai longe no tempo o discurso fascista e inócuo que pretende resolver a decadência social pela pólvora. Deu no que deu. Gastamos cada vez mais com segurança, mas vivemos cada vez mais inseguros. Sugiro aos que têm o desejo ou a responsabilidade de resolver este drama que visitem um abrigo de crianças abandonadas. Lá escutarão a resposta que procuram, se não forem surdos. Sairão conquistados pela certeza meridiana de que é preciso salvar a família.
De outra parte, já vai também enjoativo o discurso de que precisamos investir em educação. Como estender ao povo uma educação de excelência se o governo destinará dez vezes mais recursos para pagamento de juros aos bancos que à educação? Chega de aplaudir discursos que sabemos mentirosos e os demagogos que prometem almoço grátis. Para acreditar nesta conversa mole é preciso ser ingênuo, permitindo que o idealismo seja devorado por chavões, e sobretudo não ter gerido qualquer empreendimento privado. Porque a conversa do almoço grátis cai melhor entre burocratas que têm, faça chuva ou faça sol, seus salários garantidos.
Assim como existem monumentos a soldados desconhecidos, ergui outro, dedicado aos transgressores desconhecidos que se foram para a eternidade. O que importa saber se eram José ou João, se hoje mesmo outros tombarão, na mesma inutilidade? Num de seus livros, o consagrado fotógrafo Sebastião Salgado confessa que algumas vezes não conseguiu fotografar. Apontou a câmera, mas não a disparou. Nestes raros momentos depôs a máquina, sentou-se e chorou. Já é hora de enxergar que na fornalha da incompetência do estado e da omissão da sociedade, lá estão nossos irmãos, como gravetos, a aquecer um sistema perverso.
J. B. Teixeira |
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