Entendido na matéria, Seu José foi logo dizendo que não domaria aqueles bichos. Touros com menos de dois anos de idade, já corpulentos, com fenótipo charolês, já o haviam ameaçado mais de uma vez e machucado uma vaca, solta com eles no mesmo campo. O que fazer? Seu José recomendou que fossem vendidos. O proprietário, depois de alguma reflexão, decidiu que os dois touros deveriam ser castrados. Se seriam treinados, ou não, para constituírem uma junta, ficava para depois. Se alguém na região se dispusesse a fazê-lo, tanto melhor. Se tal nunca acontecesse, engordariam como gado de corte. São decisões rústicas, inevitáveis, sem as quais o campo torna-se selvagem e o manejo do gado uma tarefa quase impossível.
Lembrei desta passagem, que me foi relatada por um amigo, no sul, quando caminhava pelas ruas de São Paulo, na manhã de um domingo de carnaval. Saíra para comprar o jornal e pelo caminho fui observando as árvores, rezando e pensando no que ainda deveria fazer durante a semana que adviria para que pudesse retornar aos pagos em paz. Nas grandes cidades, em geral, ninguém se cumprimenta, salvo os vizinhos de muro. Pelas ruas, as pessoas desviam o olhar, evitando o constrangimento de passar a menos de um metro sem dizer bom dia. Faz parte e se traduz em anonimato, uma das virtudes das metrópoles para quem gosta de discrição.
Já caminhara um quilómetro e só cruzara com um cidadão correndo. Passos adiante, perto de uma pequena praça, vi um rapaz com uma pastora alemã. Deu-se então o inusitado. Enquanto olhava para o animal, no lado oposto da rua, ouvi um bom dia e acabamos conversando um pouco. Disse que admirava a raça e perguntei se a fêmea tinha pedigree. Sim, mas fora castrada. Cirurgia radical, conta com forte oposição de muitos, dentre os quais, aliás, me incluo. Este procedimento em cães significa a remoção de todo o aparelho reprodutor. Uma judiação. Por que tomaram esta decisão? Porque a cachorra anterior morrera de câncer na mesma região.
Naquela noite assistimos o filme Amor, produção barata e monótona, locada num apartamento. Um casal de velhos, ela professora de piano, ele dedicado marido, é surpreendido por um acidente vascular nela. Quando retorna do hospital, hemiplégica, mostra-se pouco propensa a prosseguir. Me fez lembrar pessoa da família que dizia que jamais usaria uma cadeira de rodas. Preferia, antes, a morte. Se bem me lembro, de fato não usou uma destas cadeiras por mais de uma semana. Sentimentos confusos, dos quais não se ausenta o orgulho e a perda de sentido da vida, acabam fechando o horizonte de alguns enfermos, a ponto de buscarem a morte.
Atraídos pela crítica, pelo tema e pelo título do filme, não imaginávamos o desfecho. O marido, obsequioso, sem uma só queixa, cuidava dela com zelo e carinho. Ela decaía a olhos vistos e tudo permitia supor que o roteiro privilegiaria justamente o amor. Lá pelas tantas o pobre velho, a título precário de encurtar o sofrimento da companheira, a sufoca com o travesseiro. Uma surpresa num filme que se arrastava, de propósito, para tensionar o espectador e convencê-lo da inutilidade de prosseguir, do aborrecido das horas que se alongam como puxa-puxa no sol. Ao retratar uma situação supostamente vivida por um casal parisiense, o filme tem o tom pessimista das produções de Bergman e do russo Tarkovski, que nos parecem colocar no olho daquele que é, segundo Camus, o único problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio.
Entre decisões rudes, como a castração no campo, supérfluas como a castração da pastora e condenáveis como a castração do tempo final de um doente terminal, há tantas coisas em comum quanto diferenças. A confusão de ideias e justificativas coloca tudo no mesmo pastiche, com justificações simplistas. Qual a ideia central do filme? A de que o amor também justifica a abreviatura da vida. Que aquele que ama pode cometer eutanásia em nome do amor. Divulgada sob tal título, esta sentença de morte ganha simpatizantes. É assim que as coisas erradas se vão infiltrando e os homens, nascidos touros, se vão tornando bois. Para contentamento de um mundo desajustado, que já distribui gratuitamente nas secretarias de saúde a pílula do dia seguinte. Em nome da saúde o governo distribui um medicamento abortivo. Em nome da saúde, os governos disseminam a morte. Como em nome do amor, tenta-se justificar a eutanásia. Quando me deparo com o mistério da morte e com o padecimento de alguns, que lastimo, mas não contesto, sinto sempre que Deus tem sua didática, que não nos cabe contrariar. A eutanásia é apenas um degrau a mais na tentativa de evitar o sofrimento, como se houvesse analgésicos para tudo. Não há. É apenas um ato de soberba, digno de quem não amadureceu como devia.
Lembrei desta passagem, que me foi relatada por um amigo, no sul, quando caminhava pelas ruas de São Paulo, na manhã de um domingo de carnaval. Saíra para comprar o jornal e pelo caminho fui observando as árvores, rezando e pensando no que ainda deveria fazer durante a semana que adviria para que pudesse retornar aos pagos em paz. Nas grandes cidades, em geral, ninguém se cumprimenta, salvo os vizinhos de muro. Pelas ruas, as pessoas desviam o olhar, evitando o constrangimento de passar a menos de um metro sem dizer bom dia. Faz parte e se traduz em anonimato, uma das virtudes das metrópoles para quem gosta de discrição.
Já caminhara um quilómetro e só cruzara com um cidadão correndo. Passos adiante, perto de uma pequena praça, vi um rapaz com uma pastora alemã. Deu-se então o inusitado. Enquanto olhava para o animal, no lado oposto da rua, ouvi um bom dia e acabamos conversando um pouco. Disse que admirava a raça e perguntei se a fêmea tinha pedigree. Sim, mas fora castrada. Cirurgia radical, conta com forte oposição de muitos, dentre os quais, aliás, me incluo. Este procedimento em cães significa a remoção de todo o aparelho reprodutor. Uma judiação. Por que tomaram esta decisão? Porque a cachorra anterior morrera de câncer na mesma região.
Naquela noite assistimos o filme Amor, produção barata e monótona, locada num apartamento. Um casal de velhos, ela professora de piano, ele dedicado marido, é surpreendido por um acidente vascular nela. Quando retorna do hospital, hemiplégica, mostra-se pouco propensa a prosseguir. Me fez lembrar pessoa da família que dizia que jamais usaria uma cadeira de rodas. Preferia, antes, a morte. Se bem me lembro, de fato não usou uma destas cadeiras por mais de uma semana. Sentimentos confusos, dos quais não se ausenta o orgulho e a perda de sentido da vida, acabam fechando o horizonte de alguns enfermos, a ponto de buscarem a morte.
Atraídos pela crítica, pelo tema e pelo título do filme, não imaginávamos o desfecho. O marido, obsequioso, sem uma só queixa, cuidava dela com zelo e carinho. Ela decaía a olhos vistos e tudo permitia supor que o roteiro privilegiaria justamente o amor. Lá pelas tantas o pobre velho, a título precário de encurtar o sofrimento da companheira, a sufoca com o travesseiro. Uma surpresa num filme que se arrastava, de propósito, para tensionar o espectador e convencê-lo da inutilidade de prosseguir, do aborrecido das horas que se alongam como puxa-puxa no sol. Ao retratar uma situação supostamente vivida por um casal parisiense, o filme tem o tom pessimista das produções de Bergman e do russo Tarkovski, que nos parecem colocar no olho daquele que é, segundo Camus, o único problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio.
Entre decisões rudes, como a castração no campo, supérfluas como a castração da pastora e condenáveis como a castração do tempo final de um doente terminal, há tantas coisas em comum quanto diferenças. A confusão de ideias e justificativas coloca tudo no mesmo pastiche, com justificações simplistas. Qual a ideia central do filme? A de que o amor também justifica a abreviatura da vida. Que aquele que ama pode cometer eutanásia em nome do amor. Divulgada sob tal título, esta sentença de morte ganha simpatizantes. É assim que as coisas erradas se vão infiltrando e os homens, nascidos touros, se vão tornando bois. Para contentamento de um mundo desajustado, que já distribui gratuitamente nas secretarias de saúde a pílula do dia seguinte. Em nome da saúde o governo distribui um medicamento abortivo. Em nome da saúde, os governos disseminam a morte. Como em nome do amor, tenta-se justificar a eutanásia. Quando me deparo com o mistério da morte e com o padecimento de alguns, que lastimo, mas não contesto, sinto sempre que Deus tem sua didática, que não nos cabe contrariar. A eutanásia é apenas um degrau a mais na tentativa de evitar o sofrimento, como se houvesse analgésicos para tudo. Não há. É apenas um ato de soberba, digno de quem não amadureceu como devia.
J. B. Teixeira |
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