“A Palavra é um dom. O outro é um dom”
Parábola do rico e Lázaro © Wikimedia Commons / Meister Des Codex Aureus Epternacensis |
(Cidade do Vaticano – 1º Março 2017) .- “A Palavra é um dom. O outro é
um dom”: este é o tema da Mensagem do papa Francisco para a Quaresma
2017, publicado no Vaticano nesta terça-feira, 7 fevereiro 2017.
A Quaresma em que os batizados estão se preparando para a Páscoa e os
catecúmenos para o batismo, abre este ano na quarta-feira de cinza, 1º
de Março, e termina com o Domingo de Páscoa, 16 de Abril.
“O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tm
6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas,
contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto
de se tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium,
55). Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a
solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao
mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e
dificulta a paz”, adverte Papa Francisco: “O pecado cega-nos.”
“Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A
sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que
se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio
interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais
superficial e efémera da existência (cf. ibid., 62)”, acrescenta o Papa.
Papa Francisco explicou que “o degrau mais baixo desta deterioração
moral é a soberba”: “O homem veste-se como se fosse um rei, simula a
posição dum deus, esquecendo-se que é um simples mortal. Para o homem
corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio eu
e, por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu
olhar. Assim o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o
rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.”
O Papa mostra como um remédio o poder da Palavra de Deus: “A Palavra
de Deus é uma força viva, capaz de suscitar a conversão no coração dos
homens e orientar de novo a pessoa para Deus. Fechar o coração ao dom de
Deus que fala, tem como consequência fechar o coração ao dom do irmão.”
AB
A Palavra é um dom. O outro é um dom.
Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma é um novo começo, uma estrada que leva a um destino
seguro: a Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte. E
este tempo não cessa de nos dirigir um forte convite à conversão: o
cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração» (Jl
2, 12), não se contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na
amizade do Senhor. Jesus é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois,
mesmo quando pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso a Ele e,
com esta espera, manifesta a sua vontade de perdão (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).
A Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida
espiritual através dos meios santos que a Igreja nos propõe: o jejum, a
oração e a esmola. Na base de tudo isto, porém, está a Palavra de Deus,
que somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade neste
tempo. Aqui queria deter-me, em particular, na parábola do homem rico e
do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31). Deixemo-nos inspirar por esta
página tão significativa, que nos dá a chave para compreender como
temos de agir para alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida eterna,
incitando-nos a uma sincera conversão.
1. O outro é um dom
A parábola inicia com a apresentação dos dois personagens principais,
mas quem aparece descrito de forma mais detalhada é o pobre:
encontra-se numa condição desesperada e sem forças para se solevar, jaz à
porta do rico na esperança de comer as migalhas que caem da mesa dele,
tem o corpo coberto de chagas, que os cães vêm lamber (cf. vv. 20-21).
Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.
A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda».
Não se trata duma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e
aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal.
Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece
como um ser conhecido e quase de família, torna-se um rosto; e, como
tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado
por Deus, apesar da sua condição concreta ser a duma escória humana
(cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).
Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. A justa relação com as
pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor. O próprio
pobre à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a
converter-se e mudar de vida. O primeiro convite que nos faz esta
parábola é o de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada
pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. A
Quaresma é um tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e
nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós encontra-o no próprio
caminho. Cada vida que se cruza connosco é um dom e merece aceitação,
respeito, amor. A Palavra de Deus ajuda-nos a abrir os olhos para
acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil. Mas, para se poder
fazer isto, é necessário tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos
revela a propósito do homem rico.
2. O pecado cega-nos
A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive
o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não
tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência
manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a
púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se
reservava para os deuses (cf. Jr 10, 9) e os reis (cf. Jz
8, 26). O linho fino era um linho especial que ajudava a conferir à
posição da pessoa um caráter quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem
é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente: «Fazia todos os
dias esplêndidos banquetes» (v. 19). Entrevê-se nele, dramaticamente, a
corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos: o amor
ao dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na Santa Missa, 20 de setembro de 2013).
O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tm
6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas,
contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto
de se tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium,
55). Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a
solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao
mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e
dificulta a paz.
Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A
sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que
se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio
interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais
superficial e efémera da existência (cf. ibid., 62).
O degrau mais baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem
veste-se como se fosse um rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se
que é um simples mortal. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas,
nada mais existe além do próprio eu e, por isso, as pessoas que o
rodeiam não caiem sob a alçada do seu olhar. Assim o fruto do apego ao
dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado,
chagado e prostrado na sua humilhação.
Olhando para esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho é
tão claro ao condenar o amor ao dinheiro: «Ninguém pode servir a dois
senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a
um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24).
3. A Palavra é um dom
O Evangelho do homem rico e do pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos
bem para a Páscoa que se aproxima. A liturgia de Quarta-Feira de Cinzas
convida-nos a viver uma experiência semelhante à que faz de forma tão
dramática o rico. Quando impõe as cinzas sobre a cabeça, o sacerdote
repete estas palavras: «Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás de voltar».
De facto, tanto o rico como o pobre morrem, e a parte principal da
parábola desenrola-se no Além. Dum momento para o outro, os dois
personagens descobrem que nós «nada trouxemos ao mundo e nada podemos
levar dele» (1 Tm 6, 7).
Também o nosso olhar se abre para o Além, onde o rico tece um longo diálogo com Abraão, a quem trata por «pai» (Lc
16, 24.27), dando mostras de fazer parte do povo de Deus. Este detalhe
torna ainda mais contraditória a sua vida, porque até agora nada se
disse da sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não havia lugar
para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus.
Só no meio dos tormentos do Além é que o rico reconhece Lázaro e
queria que o pobre aliviasse os seus sofrimentos com um pouco de água.
Os gestos solicitados a Lázaro são semelhantes aos que o rico poderia
ter feito, mas nunca fez. Abraão, porém, explica-lhe: «Recebeste os teus
bens na vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é
consolado, enquanto tu és atormentado» (v. 25). No Além, restabelece-se
uma certa equidade, e os males da vida são contrabalançados pelo bem.
Mas a parábola continua, apresentando uma mensagem para todos os
cristãos. De facto o rico, que ainda tem irmãos vivos, pede a Abraão que
mande Lázaro avisá-los; mas Abraão respondeu: «Têm Moisés e os
Profetas; que os oiçam» (v. 29). E, à sucessiva objeção do rico,
acrescenta: «Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se
deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos» (v. 31).
Deste modo se patenteia o verdadeiro problema do rico: a raiz dos seus males é não dar ouvidos à Palavra de Deus;
isto levou-o a deixar de amar a Deus e, consequentemente, a desprezar o
próximo. A Palavra de Deus é uma força viva, capaz de suscitar a
conversão no coração dos homens e orientar de novo a pessoa para Deus.
Fechar o coração ao dom de Deus que fala, tem como consequência fechar o
coração ao dom do irmão.
Amados irmãos e irmãs, a Quaresma é o tempo favorável para nos
renovarmos, encontrando Cristo vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no
próximo. O Senhor – que, nos quarenta dias passados no deserto, venceu
as ciladas do Tentador – indica-nos o caminho a seguir. Que o Espírito
Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de conversão, para
redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do pecado
que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados.
Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive
participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais,
em várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do
encontro na única família humana. Rezemos uns pelos outros para que,
participando na vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao
frágil e ao pobre. Então poderemos viver e testemunhar em plenitude a
alegria da Páscoa.
Vaticano, 18 de outubro de 2016,
Festa do Evangelista São Lucas
FRANCISCO
[Texto original: Português]
(©) Libreria Editrice vaticana
in
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