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sexta-feira, 31 de março de 2017

Deixem-me ser quem sou II

O cientista retirou um óvulo de minha mãe, colocou-o sobre a lamela do microscópio, frente à objectiva, e picou-o de forma a introduzir nele um espermatozóide de meu pai. Não sei se pertence ao homem com quem minha mãe vive. Não sei se virei a conhecer o meu verdadeiro pai. Essa dúvida ficará para sempre comigo. Outra dúvida se coloca relativamente à minha mãe. Haverá troca de lamelas? Intencional ou por acidente?

A partir do momento em que fui produzido "cientificamente" e não gerado por um gesto de amor, foi-me negado o direito de ser quem deveria ser: uma pessoa.

Uma pessoa começa por ser amada por Deus. Ama-a tanto que prepara tudo para ela, à semelhança dos pais que escolhem o melhor pediatra antes mesmo do filho nascer e o inscrevem num colégio e preparam o enxoval. Mas Deus prepara tudo com muito mais cuidado e anterioridade. Escolhe o pai e a mãe. Fá-los nascer com proximidade no tempo e no espaço. Desperta neles sentimentos de compreensão, entendimento e atracção mútuos: o amor, que lhes permitirá uma boa cooperação no trabalho de sobreviverem às aventuras da vida e da educação e formação dos filhos.

Ao amar essa pessoa, Deus tem um projecto para a tornar feliz e proporciona-lhe os meios para se preparar para seguir com êxito esse projecto. Como o pai rico que prepara o filho para saber manter e desenvolver os seus negócios.

Tudo isso me vai ser negado, a partir do momento em que sou produzido. O óvulo, depois de fecundado, começa a dividir-se. Talvez já seja eu, embora, decididamente, já marcado pela incerteza da minha verdadeira identidade. O ovo, como agora passam a chamar-me, é guardado num tubo de ensaio, esterilizado.

Novamente sinto a falta do calor do seio materno, tão diferente do da estufa-incubadora, silenciosa, estática, incapaz de sentir emoções... desumana... roubando-me um pouco mais da possível? Humanidade que me resta.

Já sou, dizem, um embrião. Junto a mim há mais cinco, todos óvulos da mesma mulher, não sei se fecundados com espermatozóides do mesmo homem. Dois ou três seremos implantados no útero da que pode, ou não, ser nossa mãe. Os outros seremos congelados.

Como poderei ser quem sou, se me congelam. Ampliam, na melhor das hipóteses, o meu tempo de gestação. Por quanto tempo? Um dia? Semanas? Anos? Este atraso no meu (ainda) possível nascimento não porá em risco a minha saúde, parte importante de quem sou? Por certo, mesmo que o meu congelamento dure apenas um dia, todo o meu ser se irá ressentir com isso. Sem perceber porquê, não me irei sentir bem. Nem física nem espiritualmente, como se estivesse preso contra minha vontade. Ninguém me dará explicações se tal vier a acontecer. Não valerá a pena. Serei um objecto produzido, não uma pessoa.

Não. Não vou ser colocado em nenhum útero. Nem mesmo alugado. Serei usado para produzir tecidos, órgãos, o que seja, para as pessoas. Decidiram mesmo que sou algo produzido. Nem me foi concedida a grandeza de poder dar a minha vida para salvar outras vidas, como efectivamente vai acontecer. Mas, porque me tornaram numa coisa, não sou livre de escolher a minha entrega, como é próprio da liberdade do homem. Ao ter sido roubado da minha liberdade, não poderei seguir nenhum projecto, por mais grandioso que seja, como também não poderei negar-me a segui-lo. Estou, cada vez mais, condenado a não ser quem sou.
 
Isabel Vasco Costa



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