Entrevista a Ángel Rodríguez Luño,
decano de teologia da PUSC, sobre o documento do Papa Montini: "Embora a
encíclica refira-se diretamente ao casamento, o que estava em jogo era a
visão global da sexualidade"
Roma,
28 de Julho de 2015
(ZENIT.org)
Rocio Lancho García
No dia 25 de julho de 1968, o Papa Paulo VI publicou a encíclica
Humanae Vitae sobre a doutrina da Igreja em relação ao matrimónio, a
abertura à vida, a contracepção e a paternidade e maternidade
responsáveis. Tópicos que seguem gerando debate dentro e fora da Igreja.
Para entender melhor os fundamentos teológicos desse documento, seu
contexto histórico e suas implicações, ZENIT entrevistou o decano da
Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma,
Ángel Rodríguez Luño.
***
ZENIT: Há quase 50 anos foi publicada a encíclica Humanae Vitae. Qual o significado dessa publicação naquela época?
- Professor Rodríguez Luño: Paulo VI publicou a Humanae vitae dois
meses depois dos acontecimentos de maio de 68, que provocaram, entre
outras coisas, a “revolução sexual”. Existia uma forte pressão de alguns
meios de comunicação social e os especialistas divulgavam previsões
demográficas pessimistas e alarmistas, que a realidade negou mais tarde.
Alguns ambientes eclesiais sofriam uma certa desorientação causada por
interpretações abusivas do Concílio, e alguns dos participantes nos
estudos preparativos da encíclica publicaram informes que não eram
definitivos. Neste contexto Paulo VI, depois de longa reflexão,
reafirmou a visão cristã da sexualidade, na qual o Criador uniu duas
dimensões de significado e de valor, que a encíclica chama “significado
unitivo” e “significado procriativo”. Esta conexão não pode
desarticular-se sem que sofram ambas dimensões, e não apenas a que se
deseja excluir.
ZENIT: De um ponto de vista teológico, foi revolucionária? Em quais pontos?
- Professor Rodríguez Luño: Depende do que se entende por
"revolucionária". Substancialmente Paulo VI propõe novamente a visão
antropológica e moral que Pio XI, em sua encíclica sobre o matrimónio,
tinha considerado como “doutrina cristã ensinada desde o princípio e
nunca modificada”. Neste sentido a Humanae Vitae não representa nenhuma
evolução. Revolucionária é a valentia com a qual Paulo VI se opôs a uns
estereótipos culturais então muito difundidos, que eram impostos, e que
eram e continuam sendo nocivos para a vida das pessoas casadas e para a
cultura moral geral. Embora a encíclica refira-se diretamente ao matrimónio, o que estava em jogo era a visão global da sexualidade.
ZENIT: Para entender o contexto histórico. O que foi que
levou o Papa Paulo VI a escrever esta encíclica? O que era necessário
responder?
- Professor Rodríguez Luño: Acho que a delicadeza do problema e a
complexidade do contexto levaram Paulo VI, estando ainda aberto o
Concílio, a ocupar-se pessoalmente do estudo e da resolução desta
questão. À luz da tradição moral da Igreja, ninguém podia duvidar que a
contracepção é um comportamento intrinsecamente desordenado. Existia uma
ideia, no imaginário coletivo, de que a anticoncepção consistia em
manipular de alguma forma a realização da relação conjugal. Como a
pílula anovulatória (que, como tal, quase não existe mais hoje, porque a
maioria dos remédios contraceptivos também têm outros efeitos, além do
anovulatório) não altera a relação conjugal, alguns se perguntaram se a
sua utilização deveria ser sempre considerada como um pecado de
contracepção. A questão não era, portanto, se a contracepção é pecado ou
não, mas se o uso esponsal da pílula anovulatória é ou não
anticoncepcional. Isto forçou a definir melhor a essência da
contracepção, que Paulo VI refere-se quando escreveu: “exclui-se também
toda ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou na sua realização, ou
no desenvolvimento das suas consequências naturais, se proponha, como
fim ou como meio, tornar impossível a procriação". Para colocá-lo de
forma gráfica: se descobríssemos que comer uma laranja antes da relação
conjugal a fechasse para a transmissão da vida, quem comesse a laranja
propondo-se, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação
cometeria o pecado de contracepção. Uso essa hipótese irreal para dar a
entender onde está a contracepção, que não depende do fato de que o
medicamento contraceptivo seja um produto artificial.
ZENIT: Você acha que na formação dos noivos falte um maior aprofundamento de alguns aspectos da Humanae Vitae?
- Professor Rodríguez Luño: Parece-me que, efetivamente, na formação
que se dá aos noivos seria necessário estudar com profundidade e
integridade a Humanae Vitae. Mas isso nos levaria longe. Limitar-me-ei a
uma só coisa que a minha experiência confirma continuamente. Quando a
encíclica de Paulo VI estava sendo preparada alguns diziam que a moral
sexual cristã acaba danificando o amor entre o homem e a mulher e a
estabilidade do matrimónio. A experiência diz que hoje, em uma cultura
na qual se difunde o recurso à contracepção e às relações
pré-matrimoniais, os fracassos dos casais são cada vez mais numerosos,
bem como também são mais numerosos os fenómenos de violência e de
infidelidade. Certamente outras causas podem levar a estes fenómenos.
Mas, continuo admirado porque muitos casais, que tiveram um longo
período de noivado, às vezes excessivamente concentrado nos aspectos
sexuais, depois de casar-se, descobrem que não se conheciam bem. Talvez
pudessem ter conversado mais e se juntado menos, porque juntar-se nem
sempre é comunicação e conhecimento. A maior parte das vezes, pelo
contrário, impede detectar e corrigir o egoísmo próprio e o da outra
parte.
ZENIT: Muitas das questões abordadas neste documento
permanecem sendo forte foco de debate social: aborto, fecundação
artificial... Com o passar do tempo é ainda maior a ‘oposição’ aos
fundamentos teológicos da Igreja sobre estas questões?
- Professor Rodríguez Luño: Nossa cultura evoluiu da forma em que
conhecemos. Denunciar as causas que fez com que as mudanças sociais
tomassem esse rumo requereria uma reflexão muito interessante, mas
também muito longa para esta entrevista. Não há dúvida de que, para
alguns, também para alguns fieis católicos, é difícil entender alguns
aspectos da moral cristã. Talvez seria necessário mais esforço para
explica-la melhor e mais esforço para compreendê-la melhor. Mas, para
mim, é muito significativo que a maioria dos fiéis praticantes
considerem muito positivo o seu próprio esforço por viver a moral
cristã, embora ocasionalmente cometam erros.
ZENIT: Durante o Sínodo dos Bispos, seria possível esperar mudanças em algumas das questões levantadas nesta encíclica?
-- Profesor Rodríguez Luño: Os Pastores querem resolver os problemas
práticos mais urgentes para a família a partir da doutrina da Igreja. O
Papa Francisco disse mais de uma vez que ele se considera antes de mais
nada um filho da Igreja. Por isso, o núcleo essencial da Humanae Vitae,
que como eu disse é um ensinamento proposto desde o começo e que nunca
foi modificado, é a luz a partir da qual serão afrontados os problemas
pastorais no Sínodo. Questões pastorais muito concretas, que se referem à
sabedoria, misericórdia e prudência cristãs com as quais se tratarão
todas as situações que têm a ver com pessoas, poderão encontrar, ao
longo do Sínodo, com a ajuda de Deus, respostas adequadas ao nosso
tempo.
ZENIT: Por que esse tem sido um dos textos magisteriais mais discutidos das últimas décadas?
-- Profesor Rodríguez Luño: Sem dúvida que este é um ponto difícil em
que todos nós somos fracos, se não sabemos apoiar-nos na graça que Deus
nos oferece. Por outra parte, a oposição da cultura dominante é forte,
embora não nova. Como explicou em um livro maravilhoso Pierre Grelot,
existia já um choque entre os ensinamentos do Génesis sobre o matrimónio
e o pensamento religioso da Mesopotâmia, Síria e Canaã. Estas religiões
pagãs sacralizavam a sexualidade humana através de duas conhecidas
vias: dos mitos e dos ritos. Nos mitos, a divindade a divindade aparece
como um conjunto de deuses e deusas, que vão em casais, e que nas suas
histórias são os arquétipos dos vários aspectos da relação homem-mulher:
fecundidade, amor-paixão, matrimónio. Estão presentes, sob nomes
diversos, as figuras do deus-pai, da deusa mãe, da deusa-amante, etc. A
concepção politeísta permite, em suma, a dissociação entre os aspectos
essenciais da sexualidade: fecundidade, amor, matrimónio. Cada aspecto é
sacralizado separadamente. Não há a integração em uma instituição como o matrimónio, condição exclusiva do amor e fecundidade moralmente bons.
Os ritos (da fecundidade, da prostituição sagrada como culto da deusa
amante, as hierogamias, etc.) também desempenham a mesma dissociação no
plano das ações, através das quais os homens unem-se à divindade e
participam da sua capacidade de amar ou de serem fecundos. A dissociação
das diferentes dimensões da sexualidade humana segue o paganismo e o
neo-paganismo como a sombra o corpo iluminado pelo sol. Em minha
opinião, esta é a explicação última das dificuldades atuais, que são
profundas, mas não intransponíveis. Vejo com esperança que entre as
pessoas jovens que praticam a sua fé cristã estas questões entendam-se
melhor do que entre os da minha geração.
(28 de Julho de 2015) © Innovative Media Inc.
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