Páginas

terça-feira, 23 de junho de 2015

Entre catastrofismo ecológico e ecologia light

Rafael Navarro-Valls é professor catedrático. Seu livro mais recente é "Entre dos orillas: de Obama al Papa Francisco”

Madrid, 22 de Junho de 2015 (ZENIT.org) Rafael Navarro-Valls

Precedida de uma sabotagem informativa e seguido de polémica – especialmente em certos setores dos Estados Unidos, ligados às indústrias do petróleo e carvão – acaba de ser publicado o texto oficial da encíclica Laudato si, que é o primeiro grande documento ecológico da História.

Daí a expectativa internacional que despertou, acrescida pelo fato de ser dirigida ao "crentes e não-crentes". Isso não significa que a Igreja Católica deixe de contribuir com o seu próprio ponto de vista, com base teológico, mas com fundamento sociológico e científico palpáveis, embora sem pretensão de intervir nos debates políticos.

A primeira coisa que faço quando leio um trabalho de certa importância é mergulhar nas suas Notas, então vou ao texto. Esta encíclica me surpreendeu pela quantidade de notas de declarações e documentos emitidos por Conferências Episcopais e outras entidades eclesiais de todo o mundo (Bolívia, Canadá, Argentina, Estados Unidos, Japão, Aparecida, etc.) sobre a questão ecológica. O que mostra a seriedade com que a própria Igreja Católica, a partir de vários ângulos, vem mostrando sobre o tema. Portanto, não é de se estranhar que o texto qualifique como “um bem para a humanidade” a sincera exposição dos desafios ecológicos derivados das convicções religiosas. Com isso, Francisco abre uma nova frente no magistério da Igreja – a ecológica –, assim como Leão XIII redescobriu o aspecto do magistério social.

Respeitar a diversidade de pontos de vista

No entanto, em um tema com tantas implicações científicas e sociológicas a prudência de Francisco leva-o a afirmar que não é a sua intenção “propor uma palavra definitiva”. Em várias questões concretas quer limitar-se a “promover um debate honesto”, respeitando “a diversidade dos pontos de vista”. Mas sem esquecer dois fatos que considera evidentes: a "rápida deterioração" dessa "casa comum", que é a Terra, e "a debilidade das reações no cenário da política internacional”, provavelmente pressionada pela aliança entre economia e tecnologia, e condicionada por interesses particulares e económicos, em verdadeira luta com o bem comum.

Alguns acusaram a primeira parte da encíclica ("O que está acontecendo com a nossa casa") de "eco-catastrófica". Mas quem a lê sem preconceito compreende que se trata do desejo de conectar – buscando soluções positivas – os abusos ecológicos com repercussões sobre os países mais pobres. A tentativa de criar uma cultura ambiental baseada não no catastrofismo milenar, mas no pragmatismo. Não sobre uma visão politizada dos problemas ambientais, mas na adoção de linhas de ação positivas.

Neste sentido, convém destacar o estímulo que a encíclica traz às "boas práticas" baseadas em "um modelo circular de produção que garanta recursos para todos e para as gerações futuras, e que requer maximizar a eficiência, a reutilização e a reciclagem". O que leva a uma terceira revolução industrial, em momentos de “crepúsculo do velho capitalismo agressivo", como destaca Jeremy Rifkin. Claro que, perante a encíclica, ficará inquieto aquele setor económico e político fortemente dependente dos combustíveis fósseis. Mas, ele mesmo é que deveria encaminhar-se, aos poucos, para as novas fontes de energias renováveis, como parece inevitável.

Ecologia light?

A moderação de abordagem não significa que Francisco se sirva, em seu discurso, de um ecologismo light, de um “verniz ecológico” sem carne e sangue teológicos. Retornando ao “cultivar e proteger a Terra” (Gen 2, 15) do mandamento bíblico, observa que nele está incluído “proteger”, “cuidar” e “vigiar”.

A partir desses parâmetros, por exemplo, ele lamenta que a crise financeira de 2007/2008 era uma grande oportunidade para voltar aos princípios éticos e reexaminar os "critérios obsoletos" que continuam a governar o mundo". Por isso – diz – "a própria “criação que sofre dores de parto” é a mesma que sofre a exploração e a destruição da natureza, com uma verdadeira ação de “roubo”, com o esgotamento dos recursos naturais, e a extensão transbordante a toda a população mundial do consumo desenfreado.

Ecologia humana

Na Laudato Si não há só um grito de alarme sobre a gradual destruição do planeta por causa de uma descontrolada atividade humana. Também reafirmam-se problemas de “ecologia humana” e “ecologia integral”, tão próximos do Magistério da Igreja como a função social do direito à propriedade privada, que “não é absoluto ou intocável”, uma vez que está sujeita à "hipoteca social "mencionada por João Paulo II; o respeito pela vida "que não parece muito compatível com a defesa da natureza como justificação do aborto”; a rejeição do relativismo, que corrompe a cultura “quando não se reconhece nenhuma verdade objetiva e que faz das leis imposições arbitrárias”, ou o perigo de uma guerra química ou nuclear, que ainda paira sobre a humanidade.

De especial interesse é a fórmula de Francisco sobre o "débito ecológico", ou seja, a responsabilidade dos países do Norte com os países do Sul, que “continuam alimentando o desenvolvimento dos países mais ricos..., com um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”. Este débito exige que os países desenvolvidos “limitem o consumo de energias não renováveis, contribuindo aos não desenvolvidos recursos para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável".

Em suma, esta encíclica está chamada a ser polémica. Apenas um exemplo: Obama acaba de elogiá-la e Bush a olha com receio. Mas, a polémica – na minha opinião – perderá força quando seja lida a fundo e se descubra a sua riqueza teológica, moral e, até mesmo, de cidadania ecológica. Como se falou, contém um verdadeiro olhar “divino” sobre a Terra e as pessoas que a habitamos.



Sem comentários:

Enviar um comentário