Rafael Navarro-Valls é professor catedrático. Seu livro mais recente é "Entre dos orillas: de Obama al Papa Francisco”
Madrid,
22 de Junho de 2015
(ZENIT.org)
Rafael Navarro-Valls
Precedida de uma sabotagem informativa e seguido de polémica –
especialmente em certos setores dos Estados Unidos, ligados às
indústrias do petróleo e carvão – acaba de ser publicado o texto oficial
da encíclica Laudato si, que é o primeiro grande documento ecológico da
História.
Daí a expectativa internacional que despertou, acrescida pelo fato de
ser dirigida ao "crentes e não-crentes". Isso não significa que a
Igreja Católica deixe de contribuir com o seu próprio ponto de vista,
com base teológico, mas com fundamento sociológico e científico
palpáveis, embora sem pretensão de intervir nos debates políticos.
A primeira coisa que faço quando leio um trabalho de certa
importância é mergulhar nas suas Notas, então vou ao texto. Esta
encíclica me surpreendeu pela quantidade de notas de declarações e
documentos emitidos por Conferências Episcopais e outras entidades
eclesiais de todo o mundo (Bolívia, Canadá, Argentina, Estados Unidos,
Japão, Aparecida, etc.) sobre a questão ecológica. O que mostra a
seriedade com que a própria Igreja Católica, a partir de vários ângulos,
vem mostrando sobre o tema. Portanto, não é de se estranhar que o texto
qualifique como “um bem para a humanidade” a sincera exposição dos
desafios ecológicos derivados das convicções religiosas. Com isso,
Francisco abre uma nova frente no magistério da Igreja – a ecológica –,
assim como Leão XIII redescobriu o aspecto do magistério social.
Respeitar a diversidade de pontos de vista
No entanto, em um tema com tantas implicações científicas e
sociológicas a prudência de Francisco leva-o a afirmar que não é a sua
intenção “propor uma palavra definitiva”. Em várias questões concretas
quer limitar-se a “promover um debate honesto”, respeitando “a
diversidade dos pontos de vista”. Mas sem esquecer dois fatos que
considera evidentes: a "rápida deterioração" dessa "casa comum", que é a
Terra, e "a debilidade das reações no cenário da política
internacional”, provavelmente pressionada pela aliança entre economia e
tecnologia, e condicionada por interesses particulares e económicos, em
verdadeira luta com o bem comum.
Alguns acusaram a primeira parte da encíclica ("O que está
acontecendo com a nossa casa") de "eco-catastrófica". Mas quem a lê sem
preconceito compreende que se trata do desejo de conectar – buscando
soluções positivas – os abusos ecológicos com repercussões sobre os
países mais pobres. A tentativa de criar uma cultura ambiental baseada
não no catastrofismo milenar, mas no pragmatismo. Não sobre uma visão
politizada dos problemas ambientais, mas na adoção de linhas de ação
positivas.
Neste sentido, convém destacar o estímulo que a encíclica traz às
"boas práticas" baseadas em "um modelo circular de produção que garanta
recursos para todos e para as gerações futuras, e que requer maximizar a
eficiência, a reutilização e a reciclagem". O que leva a uma terceira
revolução industrial, em momentos de “crepúsculo do velho capitalismo
agressivo", como destaca Jeremy Rifkin. Claro que, perante a encíclica,
ficará inquieto aquele setor económico e político fortemente dependente
dos combustíveis fósseis. Mas, ele mesmo é que deveria encaminhar-se,
aos poucos, para as novas fontes de energias renováveis, como parece
inevitável.
Ecologia light?
A moderação de abordagem não significa que Francisco se sirva, em seu
discurso, de um ecologismo light, de um “verniz ecológico” sem carne e
sangue teológicos. Retornando ao “cultivar e proteger a Terra” (Gen 2,
15) do mandamento bíblico, observa que nele está incluído “proteger”,
“cuidar” e “vigiar”.
A partir desses parâmetros, por exemplo, ele lamenta que a crise
financeira de 2007/2008 era uma grande oportunidade para voltar aos
princípios éticos e reexaminar os "critérios obsoletos" que continuam a
governar o mundo". Por isso – diz – "a própria “criação que sofre dores
de parto” é a mesma que sofre a exploração e a destruição da natureza,
com uma verdadeira ação de “roubo”, com o esgotamento dos recursos
naturais, e a extensão transbordante a toda a população mundial do
consumo desenfreado.
Ecologia humana
Na Laudato Si não há só um grito de alarme sobre a gradual destruição
do planeta por causa de uma descontrolada atividade humana. Também
reafirmam-se problemas de “ecologia humana” e “ecologia integral”, tão
próximos do Magistério da Igreja como a função social do direito à
propriedade privada, que “não é absoluto ou intocável”, uma vez que está
sujeita à "hipoteca social "mencionada por João Paulo II; o respeito
pela vida "que não parece muito compatível com a defesa da natureza como
justificação do aborto”; a rejeição do relativismo, que corrompe a
cultura “quando não se reconhece nenhuma verdade objetiva e que faz das
leis imposições arbitrárias”, ou o perigo de uma guerra química ou
nuclear, que ainda paira sobre a humanidade.
De especial interesse é a fórmula de Francisco sobre o "débito
ecológico", ou seja, a responsabilidade dos países do Norte com os
países do Sul, que “continuam alimentando o desenvolvimento dos países
mais ricos..., com um sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso”. Este débito exige que os países desenvolvidos
“limitem o consumo de energias não renováveis, contribuindo aos não
desenvolvidos recursos para promover políticas e programas de
desenvolvimento sustentável".
Em suma, esta encíclica está chamada a ser polémica. Apenas um
exemplo: Obama acaba de elogiá-la e Bush a olha com receio. Mas, a polémica – na minha opinião – perderá força quando seja lida a fundo e
se descubra a sua riqueza teológica, moral e, até mesmo, de cidadania
ecológica. Como se falou, contém um verdadeiro olhar “divino” sobre a
Terra e as pessoas que a habitamos.
(22 de Junho de 2015) © Innovative Media Inc.
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