Dom Filippo Santoro, arcebispo de Taranto, actualiza o Documento de Aparecida na linha do Concílio Vaticano II. O arcebispo foi colaborador do então cardeal Jorge Mario Bergoglio que guiou a comissão encarregada de escrever o documento final de Aparecida
Roma, 03 de Outubro de 2013
O Magistério e a acção pastoral do papa Francisco são o fruto
maduro da Conferência Geral do episcopado latino americano, realizada
no Brasil, no santuário mariano nacional de Aparecida em maio de 2007 da
qual o cardeal Jorge Mario Bergoglio foi protagonista e figura de
destaque. A Conferência de Aparecida indicou no "discípulo missionário" o
sujeito da presença da Igreja na sociedade para que os povos
latino-americanos tenham vida plena. O sujeito é quem tem consciência de
si mesmo, de sua originalidade e missão. O novo sujeito que está na
origem da libertação cristã nasce de algo diferente do puro dinamismo
natural, não é fruto do esforço humano e nem mesmo do planeamento
pastoral. A originalidade é dada pela irrupção do Espírito na história.
Daqui procede a força profética da Igreja na América Latina, que assume
a missão proclamada por Jesus na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou para levar aos
pobres a boa notícia" (Lc 4, 18). Daí a vigorosa afirmação da
evangélica opção preferencial pelos pobres. Trata-se exactamente e
simplesmente da pobreza evangélica e do testemunho de vida em meio às
pessoas como vemos no ser e no agir do Papa Francisco.
A disputa aberta na teologia latino-americana não era tanto sobre o
uso da análise marxista (amplamente admitida em certos pontos da
galáxia da Teologia da Libertação) e menos ainda sobre a necessidade de
mediação das ciências sociais, mas sobre a origem da novidade cristã e
sobre o seu impacto específico na sociedade dominada pela injustiça,
pela exploração do capitalismo neo-liberal e pela pobreza escandalosa do
continente latino-americano. O longo iter que levou às duas instruções
da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1984 (Libertatis Nuntius) e em 1986 (Libertatis conscientia), e que seguiu-se a elas, resultou no maravilhoso evento de graça que foi a Conferência de Aparecida, da qual pude participar.
O seu ponto de partida não foi a análise social, mas a fé de um povo
feito na sua grande maioria de pobres, fazendo uso do método ver, julgar
e agir, “a partir dos olhos e do coração dos discípulos missionários”.
Diz o n. 19 do Documento final: “Em continuidade com as Conferências
Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano, este documento faz uso
do método “ver, julgar e agir”. Este método implica em contemplar a
Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contacto
vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida quotidiana, vejamos a
realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos
segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e actuemos a partir da
Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na
propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica
plenamente no Céu”.
O documento começa com uma solene "acção de graças a Deus", e tem como
perspectiva, "a alegria de ser discípulos e missionários de Jesus
Cristo". A introdução e o primeiro capítulo indicam a perspectiva de fé
em que se move o texto no seu olhar analítico da realidade, no
desenvolvimento dos critérios de juízo e nas perspectivas de acção.
Sabe-se que o Presidente da Comissão para a elaboração do documento
final de Aparecida era o arcebispo de Buenos Aires, cardeal Bergoglio.
Com um estilo sapiencial, o Documento de Aparecida na introdução afirma:
“O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os
desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas todo o
amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito
Santo” (n. 14). Esta referência inicial à Santíssima Trindade foi
positivamente solicitada por causa de uma intervenção decisiva do
Cardeal Bergoglio, da qual também fala, com um certo pesar, um
comunicado da agência Adista (no n. 46 de 23-06-2007, escrito por
Marcello Barros). “Um dos delegados brasileiros, o bispo de Jales, dom
Demétrio Valentini, comentou que a Conferência ‘concretizou um dos seus
maiores objectivos, o de retomar o caminho da Igreja na América Latina,
fortalecendo a identidade e superando perplexidades que impediam a sua acção’. Pena que, uma vez estabelecido, o método não foi depois aplicado
com rigor, pois a análise da realidade - o "ver" – foi precedida por um
capítulo introdutório sobre “os discípulos missionários”. Como conta o
teólogo argentino de Ameríndia, Eduardo de la Serna, o pedido para
colocar este capítulo no início da segunda parte foi rejeitado na
votação, apesar de ter sido apresentado por 16 presidentes de
Conferências Episcopais. Quem se manifestou contrariamente, antes da
votação, foi o cardeal Jorge Mario Bergoglio, presidente da Conferência
Episcopal da Argentina e da Comissão de Redacção, argumentando que com
relação à dureza da realidade, era melhor começar com uma espécie de
doxologia (hino de louvor a Deus )”.
Assim, o esquema do documento valoriza a tradição da teologia e da
pastoral latino-americana, mas, ao mesmo tempo, coloca em evidência a
perspectiva da fé. Certamente ela não estava ausente, mas em certos
desenvolvimentos tinha sido dada como descontado, devendo preocupar-se,
sobretudo, com a gravidade de uma situação social cheia de conflitos e,
especialmente, com o “clamor dos pobres”. Neste sentido, ajuda a
entender toda a problemática a posição de Clodovis Boff a partir de um
artigo da Revista Eclesiástica Brasileira sobre a questão do pobre como princípio epistemológico da Teologia da Libertação. “Quando
se questiona o pobre como princípio e se pergunta se não è antes o Deus
de Jesus Cristo, a TdL costuma recuar e não nega. E nem poderia, pois
Deus está em primeiro lugar, por definição. […] O que faz problema é a
sua indefinição sobre uma questão que é capital na esfera do método” . O dado da fé “representa um dado pressuposto, que ficou para atrás, e não um princípio operante que
continua sempre activo. […] Pois o primado da fé, como não pode ser dado
por descontado do ponto de vista existencial, também não pode sê-lo do
ponto de vista epistemológico”. (Teologia da Libertação e volta ao fundamento, in: REB, fasc. 268, out/2007, passim pp. 1002-1004).
Esta ambiguidade é superada pela Conferência de Aparecida, tanto na
estrutura geral do documento quanto na presença viva da fé em cada
momento de seu desenvolvimento, desde o olhar para a dura realidade até o
seu julgamento e a prática consequente. Trata-se, porém, de uma
ambiguidade sempre presente. Por isso, o Papa Francisco, em sua recente
viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, no encontro com o
presidência do CELAM, voltava sobre o assunto no ponto 4, quando, ao
apresentar algumas tentações contra o discipulado missionário, falou da
“ideologização da mensagem evangélica”, e afirmou: “É uma tentação que
se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de
interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da
Igreja. Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a
forma de “assepsia”. Foi usado, e está bem, o método de “ver,
julgar, agir” (cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por um
"ver" totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que não é viável. O ver é
sempre influenciado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica.
Então a pergunta era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida
respondeu: Com o olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a
32. Existem outras maneiras de ideologização da mensagem e, actualmente,
aparecem na América Latina e no Caribe propostas desta índole. Menciono
apenas algumas: a) O reducionismo socializante. É a ideologização mais
fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma
pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as
ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo
de mercado até às categorizações marxistas...”
Se o Papa fala disso significa que ainda podem subsistir as tentações
e as ambiguidades. Certamente Aparecida deu uma contribuição
significativa e marcou uma mudança de posição que é válida não só para a
América Latina, mas para toda a Igreja. Isso se tornou possível graças
ao magistério e ao testemunho do Papa Francisco que quer "uma Igreja
pobre para os pobres".
Antes de sua eleição, Aparecida foi praticamente ignorada na Itália e
na Europa e em outras partes do mundo, apesar das várias intervenções
dos bispos latino-americanos nos últimos dois sínodos. Aparecida, numa
fase não mais eurocêntrica, coloca-se hoje como um magistério não só
regional, mas oferecido a toda a Igreja em suas escolhas específicas,
que constituem o desenvolvimento do Concílio Vaticano II. A começar pela
opção pelos pobres à inculturação da fé, Ao protagonismo dos leigos na
luta pela justiça contra as estruturas sociais e económicas injustas,
passando pelas comunidades eclesiais de base até chegar às pequenas
comunidades, etc. Tudo é valorizado: a vida, a família, o renascimento
vigoroso da religiosidade popular, a liturgia, a arte, a cultura, as
vocações, os jovens, os movimentos e as novas comunidades, etc. O tema
dominante, no entanto, continua sendo a missão, especialmente na
terceira parte do documento com o título sugestivo "A vida de Jesus
Cristo para nossos povos".
Da experiência latino-americana e de Aparecida deriva esse contacto directo com as pessoas, esse assumir os problemas das pessoas levando a
esperança de Cristo. Tudo é abraçado a partir da fé. Esta clara posição
evangélica é um dom do Espírito e do seu poder que age no povo fiel e
que culmina na Conferência de Aparecida. Agora papa Francisco a estende
para toda a Igreja. Não se trata de uma teologia particular (como também
se pode notar na entrevista concedida pelo Papa à "Civiltà Cattolica"),
mas do coração evangélico da libertação cristã. Assim se projecta não
apenas uma "Missão Continental", como está acontecendo na América
Latina, mas uma verdadeira "Conversão Pastoral" e uma "Missão
Permanente", em diálogo com as várias religiões e com as expectativas
mais verdadeiras do mundo contemporâneo.
Por Dom Filippo Santoro
D. Filippo Santoro foi nomeado arcebispo de Taranto por Bento XVI
a 21 de Novembro de 2011. Originário de Bari-Carbonara, 65 anos, é um
profundo conhecedor da América Latina e das suas problemáticas
eclesiais, inclusive da teologia da libertação. Depois de ter obtido o
doutorado em teologia dogmática na Gregoriana e em filosofia na Católica
de Milão e ser ordenado padre em 1972, no ano de 1984 foi enviado como
padre fidei donum da arquidiocese de Bari para o Rio de Janeiro, no
Brasil. De 1988 a 1996 foi responsável por Comunhão e Libertação na
América Latina e em 1992 participou como teólogo-perito na IV
Conferência Geral do CELAM de Santo Domingo. João Paulo II o nomeou, em
1996, bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro e em 2004, bispo
de Petrópolis. Participou em 2007 na V Conferência Geral do episcopado
latino-americano celebrada em Aparecida, no Brasil, onde foi colaborador
do então cardeal Jorge Mario Bergoglio que guiou a comissão encarregada
de escrever o documento final de Aparecida.
in
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