Situação dos Bayingyi
Há uma pequena região no centro de Myanmar onde existe uma população significativa de Bayingyi, ou seja, católicos de ascendência portuguesa que vivem naquele país há séculos (supõe-se que desde os séc. XVI-XVII) e que se distinguem por terem mantido e transmitido a fé cristã de geração em geração. É uma comunidade que tem sido especialmente massacrada pelas tropas que tomaram conta do poder, em 2019.
Os portugueses chegaram a ter entrepostos comerciais naquela zona, nos finais do século XVI, mas acabariam por ser derrotados por forças locais e obrigados a instalar-se, em número de vários milhares, na região hoje conhecida por Sagaing. Ao longo do tempo, através de casamentos mistos, o grupo foi-se fundindo com etnias nativas, havendo uma parte que manteve traços fisionómicos europeus e outra parte que não se distingue do comum dos habitantes.
Desde que uma junta militar desencadeou o golpe de estado, há pouco mais de três anos, apeando o governo de Aung San Suu Kyi, que se levantou uma fortíssima resistência de grandes setores da população (oposicionistas, minorias étnicas e guerrilhas históricas), a qual se reorganizou e tem vindo a combater o exército regular e a ocupar crescentes zonas rurais, sobretudo na parte a sul e sudeste que faz fronteira com a Tailândia.
Um dos principais polos desta zona em que se instalaram os descendentes de portugueses é a aldeia de Chan Thar, que tinha, antes do conflito que eclodiu com o golpe, cerca de 530 famílias e à roda de 2.000 habitantes, a maioria católicos.
Uma reportagem recente da edição em inglês da revista birmanesa Frontier Myanmar, que nos serve aqui de referência, focada nesta comunidade, sublinha o contraste entre a vida pacífica dos Bayingyi e a violência a que têm estado sujeitos nos últimos anos. Numa zona disputada pelas duas partes em conflito, onde é possível um viajante defrontar-se com postos de controlo dos dois lados, conta-se a história de uma mulher de 31 anos que ia, com vizinhos seus, abastecer-se numa cidade próxima, e que foi retirada e levada por um grupo de militares da junta, e mais tarde morta a tiro e queimada.
Os seus olhos azuis, que a diferenciavam, são considerados um motivo bastante para este tipo de abuso e violência, por se deduzir que sendo Bayingyi, será também católica. Ora, sublinha a Frontier Myanmar, isto ocorre numa região onde os militares “pregam um tipo tóxico de supremacia Bamar [etnia maioritária] e o nacionalismo budista”.
Um residente de Chan Thar, citado pelo jornal, cuja casa foi incendiada em 2022, disse que a aldeia foi invadida sete vezes, com sete civis mortos e cinco desaparecidos, presumivelmente mortos. De cada vez os militares iam incendiando algumas casas, a ponto de, na atualidade, praticamente todas elas terem sido queimadas. A maioria dos moradores tiveram de fugir para locais mais seguros.
Nem as igrejas têm sido poupadas, várias delas, com significativo valor histórico e patrimonial, como aconteceu em Chan Thar, com a igreja da Assunção de Maria, construída em finais do séc. XIX. Esta destruição dos templos não decorre apenas de hostilidade religiosa, mas também do facto de muitos deles servirem de refúgio para a população.
Um combatente da resistência, citado pela revista birmanesa, comentou que “as pessoas das aldeias de Bayingyi têm maior probabilidade de serem mortas se encontrarem soldados. Embora os militares estejam a matar todas as pessoas, independentemente da etnia, é óbvio que estão mais dispostos a usar a violência contra os não-budistas”, disse ele.
Por tudo isto, o facto de o cardeal Bo, que é originário destas comunidades católicas, ter aparecido, logo em 2021, numa festa ao lado do presidente da junta militar, não caiu bem entre os seus correligionários. E se ele procurava protegê-las com essa aproximação, o resultado foi precisamente o contrário e até a própria casa de familiares do cardeal terá sido destruída.
Um monge budista de espírito ‘ecuménico’
Entretanto, uma reportagem do diário francês Le Monde dava conta, esta segunda-feira, 5, da ação de um destacado monge budista (ashin, isto é, venerável), que foi um dos líderes da “revolução de açafrão”, em 2007, em que pela primeira vez os monges afrontaram o regime militar da altura, e que deixou o seu exílio na Noruega para ir dar apoio à resistência birmanesa.
Neste país, cujos 50 milhões de habitantes são esmagadoramente (85 por cento) budistas, uma acentuada pobreza, sobretudo na assim designada zona árida, leva a que muitos vejam nos mosteiros espaços de acolhimento onde se pode ter uma vida com o básico assegurado. Muitos pobres encaminham para lá os filhos, apesar de ser tradição do país que todos passem lá alguns períodos da vida.
O monge budista, nomeado apenas por H., viaja com o enviado especial de Le Monde e um negociante muçulmano da Malásia, por zonas controladas pela resistência; acende uma vela a Maria em terra cristã e encontra-se com uma religiosa franciscana que veio dar apoio. Para ele, o exercício do ecumenismo é uma preparação para a futura coexistência dos diferentes em democracia.
Para ele, tal como para o governo clandestino e para a resistência, o objetivo da luta, uma vez derrotada a junta, é estabelecer uma “democracia federal”, na qual os cidadãos não tenham de se identificar pela religião e pela etnia a que pertencem, como agora acontece, mas simplesmente como birmaneses. E, na mesma linha, os Rohingya, minoria muçulmana no estado de Arakan, na fronteira com o Bangladesh, não podem ser considerados apátridas no seu próprio país, o que terá de passar por revogar as leis de nacionalidade em vigor.
O monge H. é o contraponto da deriva extremista e ultranacionalista do budismo, que a atual junta militar tem instrumentalizado para se legitimar.
Associação lançou campanha de angariação de fundos
A AILD – Associação Internacional de Luso-Descendentes, com sede em Lisboa, anunciou o lançamento de uma campanha de angariação de fundos para mitigar as perdas que afetaram várias das aldeias bayingyis, com antepassados portugueses, que foram inteiramente queimadas.
Considerando o momento que vivem essas comunidades como “muito difícil”, a AILD recorda que os bens das pessoas foram destruídos e houve até vários assassinatos. “Aterrorizados pela ação da soldadesca e os tiros da artilharia, os habitantes dessas aldeias fugiram e encontram-se agora refugiados nas instalações da diocese em Mandalay, a segunda cidade do país”, nota a Associação.
O site da AILS tem um link a partir do qual é possível fazer um donativo.
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