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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Mãos à obra

Naquela noite, ao chegar mais tarde que o habitual para jantar, o presidente da Junta de Freguesia dos Castelinhos vinha tão preocupado que a mulher e os filhos logo deram conta… porém, sem grandes explicações, referindo apenas ter sido chamado à Câmara para um assunto urgente, sentou-se à mesa e tentou que a conversa com a família fosse tão natural quanto possível, perguntando a cada um como tinha corrido o dia. Rodrigo, o filho mais novo, apesar de ansioso por falar, ouviu os outros, esperou a sua vez e então começou a contar:

‘Não imaginam… depois de tanta coisa ter corrido mal no ano passado, em especial as aulas de Cidadania, temos uma nova Diretora de Turma, de quem gostámos muito logo às primeiras impressões! Hoje, como ainda não tínhamos todos os professores, ela ficou conosco toda a manhã e ninguém se fartou… apresentou-se, disse que vai ser também nossa professora de inglês, fez-nos um inquérito a saber o que gostamos mais na escola e do que não gostamos e pediu que lhe escrevêssemos uma pergunta para ela também nos responder. Depois levou-nos para a sala de computadores e passou umas cenas de um filme chamado ‘Favores em cadeia’ (‘Pay it forward‘), onde aparece um miúdo que tem uma ideia brilhante para conseguir tornar o mundo melhor… Ela propõe-nos fazermos o mesmo que aquele miúdo, nas nossas aulas de Cidadania: descobrirmos como tornar a vida mais agradável para todos aqui na escola, nas nossas casas e até nos bairros onde vivemos… e por isso pediu-nos para, até sexta-feira, dois a dois, passarmos por todos os espaços dentro e em volta da escola e anotarmos o que vemos de errado e o que nos propomos fazer! Foi ‘muita fixe’… Só achámos esquisito ela entrar na aula com um lenço amarrado à cabeça… e até houve vários colegas meus que fizeram essa pergunta… mas uns queriam saber se era portuguesa, outros se era casada e se tinha filhos, se vivia perto da escola… muitas perguntas… e a professora no fim de tudo, pegou nas nossas perguntas e começou a responder a cada uma… só não respondia à história do lenço na cabeça… e a malta queria mesmo saber…’

‘Ó Rodrigo, espero que não tenhas sido tu a perguntar… que falta de educação!…’ comentou a mãe.

‘Não, não perguntei nada disso… só perguntei se a professora nunca tirava o lenço… e sabem o que aconteceu???’

‘Não, diz lá o que aconteceu…?’ pediram os irmãos, curiosos.

‘Ela, de repente, tirou o lenço, e ninguém queria acreditar… fazia mesmo impressão! É que ela não tem cabelo nenhum, nenhum… é completamente careca… e depois, explicou-nos que teve um cancro, foi operada e está a fazer uns tratamentos que lhe fazem cair o cabelo todo… por isso anda de lenço…  mas ela é nova, e mesmo careca, é gira!!! Ficámos a gostar ainda mais dela… além disso, parece sempre alegre e bem-disposta.’

‘Então e o que vão fazer da vossa escola??? Está tão feia por fora, um nojo… cheia de grafitis e coisas parvas escritas ou desenhadas por todo o lado… quando a gente andava lá, não era nada assim… ninguém se atrevia…’, comentaram os irmãos mais velhos. O pai olhou, muito sério, para o Rodrigo, e disse-lhe só que era muita pena a escola ter-se degradado tanto… tal como o bairro que a rodeava… calou- se e não disse mais nada até ao fim do jantar. Depois, ao contrário do que era seu costume, despediu-se de todos e foi para o quarto fazer uns telefonemas de trabalho.

O Presidente da Junta tinha razão para estar preocupado!

A sua família vivia na zona nova e bem arranjada, num condomínio bem arquitetado, com prédios altos de boa qualidade, construídos havia uns cinco anos, rodeados de um parque verde, bonito, florido e bem cuidado, apenas separados do bairro velho por uma grande avenida com uma sebe de azáleas no meio. Contudo, era chocante esse enorme contraste!

Com efeito, do outro lado da avenida, ficava a escola, uma escola feia e velha, e por trás dela, os poucos canteiros que restavam, estavam destruídos, pisados, cobertos de silvas e pejados de lixo, tal  como as ruas e entradas dos prédios, lixo maior que os contentores e que diariamente se acumulava, passando-se dias sem que alguém o levasse; até as pedras dos passeios estavam soltas, ou cheias de dejetos… além disso, via-se sempre a qualquer hora, gente de todas as  idades, sem trabalho nem ocupação, encostados  às portas dos cafés e dos prédios; era um bairro de construções baratas, com cerca de sessenta anos, que o tempo e as pessoas tinham deixado degradar, um bairro infelizmente bem conhecido por problemas constantes ligados à droga e ao álcool…  a polícia era chamada, mas já pouco lá entrava… só as carrinhas de apoio social que iam buscar velhos e doentes para centros de dia, ou distribuir comida e medicação. À noite, havia sempre gritaria e confusão, dentro e fora das casas, as pessoas mais velhas receavam sair à rua ou abrir a porta, e já na zona nova tinham começado os primeiros problemas… até à luz do dia, tinham começado assaltos à mão armada, roubos de carros, apedrejamento de montras …

Por este motivo, o Presidente da Câmara reunira de emergência com o Presidente da Junta, nessa mesma tarde, dizendo-lhe que estava farto de ouvir queixas e, ou ele apresentava um plano de emergência para recuperação do bairro velho, ou bairro e escola seriam demolidos dentro de seis meses e as pessoas realojadas, a bem, ou à força, noutros bairros da cidade…

Ora o Presidente da Junta era um homem bom e sensível, conhecia muitos dos moradores e bem sabia como era difícil resolver os múltiplos problemas sociais daquela população heterogénea e tentar reeducar pessoas com longos anos de maus hábitos, mas por outro lado, sentia que a destruição da escola e das suas moradas antigas, bem como o realojamento de todos, seriam motivo de grande perturbação e sofrimento… talvez não fosse a melhor solução... que fazer???

Nas noites seguintes, Rodrigo chegava ao jantar familiar cada vez mais entusiasmado com as novidades da sua escola… a professora continuava a animá-los e todos os dias lhes perguntava: ‘Posso contar convosco??? Posso? Então, mãos à obra! Toca a trabalhar!’ 

Os pais, por vezes já se interrogavam,  se o interesse do filho pela Educação para a Cidadania não estaria a retirar importância às outras disciplinas,  as matérias sobre as quais, em última instância, Rodrigo e os colegas seriam avaliados no final do ano… mas não, pelo contrário, a verdade é que o interesse pela ‘sua’ escola crescera em todos os aspetos… e em breve, os miúdos estavam a limpar a sua sala de aula diariamente, a pintar salas e muros do recreio, a decorar uma sala de jogos,  a fazer uma horta e uma estufa nuns espaços até então desaproveitados… e preparavam-se para fazer um jornal online da escola com outras turmas e outros colegas, e já havia até outros diretores de turma a seguirem o exemplo da professora do Rodrigo, e a criarem um grupo desportivo, uma banda e um coro, um grupo de teatro e dança, além de um grupo de ação social para apoio aos alunos visivelmente carenciados. Aos poucos, a professora começou a convidar também os pais das várias turmas para irem ajudar a pintar a escola. E aos sábados, a escola enchia-se de pais e filhos, cada grupo em sua atividade, dirigida por alunos mais velhos ou mais dotados em cada área,  e havia sempre algum professor  ou professora, a apoiar essas atividades de forma gratuita, por puro voluntariado. 

Em conversa com a mulher, numa dessas noites,  o Presidente da Junta de Freguesia comentou que talvez a estratégia da diretora de turma de Rodrigo pudesse ser também aplicada ali à sua freguesia dos Castelinhos, envolvendo até voluntários do bairro novo, capazes de se interessarem pela recuperação do bairro velho e degradado… e a mulher concordando, sugeriu-lhe irem falar os dois com a professora, para se apresentarem e também eles próprios se disponibilizarem para ajudar nas atividades de sábados.

A professora recebeu-os com grande simpatia e eles ficaram agradavelmente surpreendidos com as mudanças verificadas na escola em apenas mês e meio de funcionamento. Não queriam acreditar! Então, o Presidente da Junta de Freguesia quis saber se a professora poderia também ajudar na recuperação do Bairro velho, onde viviam tantos dos alunos da escola, por exemplo, permitindo que à noite, ou ao fim da tarde, se fizessem reuniões com os pais para os motivar e interessar. A professora não só concordou de imediato, como lhes disse que a diretora da escola era sua irmã e certamente não poria qualquer entrave! Acrescentou que conhecia vários pais do Bairro velho interessados em colaborar e também um grupo de jovens universitários muito bons e disponíveis para ajudar como monitores em várias tarefas prioritárias, como organização da recolha do lixo e jardinagem nas várias ruas, assim como um ATL de apoio ao estudo de alunos com dificuldades. Por outro lado, se o Presidente da Junta estivesse de acordo, ela gostaria de lhe apresentar uma congregação de Religiosas, suas amigas, ligadas à recuperação de drogados e alcoólicos, que há muito gostariam de criar um polo de ajuda ali no Bairro, caso o Presidente lhes arranjasse uma casa vaga…

E de repente, as ideias começaram a surgir em cadeia, umas atrás das outras, e os três já sonhavam com um Bairro de cara lavada, renovado de corpo e alma… e a conversa prolongou-se até tarde. À saída, o casal abraçou a professora com gratidão e quando se despediam, o Presidente de repente, fez-lhe uma última pergunta:

Professora, desculpe, não queria ser indiscreto como o meu filho Rodrigo, mas posso perguntar-lhe onde foi buscar toda essa força e capacidade de entrega?

Bem, é uma pergunta difícil… com resposta longa… mas vou responder… não vos escondo que quando adoeci, era uma rapariga normal com uma vida cheia de outros interesses, os meus interesses pessoais, muito centrada em mim… foi um rude golpe, o chão parecia fugir-me debaixo dos pés, senti-me muito perdida… então uns amigos convidaram-me para um café em casa deles e na parede da sala tinham um quadro lindíssimo com uma legenda: ’Sê útil. Deixa rasto!’ E conversando com eles sobre o quadro e a legenda, de repente comecei a perceber que a minha vida não estava acabada… hoje percebo que não sou inútil e acredito que a minha vida faz sentido… deram-me seis meses de vida. Talvez um pouco mais, ou um pouco menos… quem sabe? Mas saí de casa dos meus amigos a pensar que tinha de aproveitar bem todos estes dias da minha vida… é isso que estou a tentar fazer… E a si, Presidente, só lhe posso dizer, o que digo aos meus miúdos: ‘Mãos à obra! Vai conseguir!’ E com um grande sorriso a professora fez-lhes um aceno de cumplicidade.


Fátima Fonseca

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