Um livro para ouvir
A surpresa estampa-se na capa: Sting & Religion. Muito provavelmente admiradores e ouvintes mais ou menos ocasionais não associam o cantor e músico britânico a esta dimensão, da religião, quando ouvem Message in a Bottle ou Englishman in New York. Pura distração ou desconhecimento: o antigo vocalista dos britânicos The Police tem na Bíblia uma fonte abundante de inspiração e citações. E esse é o objeto da obra de Evyatar Marienberg, professor do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, nos Estados Unidos.
A fotografia da capa de Sting & Religion — The Catholic-Shaped Imagination of a Rock Icon (ed. Cascade Books, 2021; sem tradução em português) sublinha, também ela, este vínculo: Sting posa, de casaco escuro, ao lado de uma imagem de Maria, na ilha caribenha de Montserrat. Não é uma foto inédita, está na contracapa de Nothing Like the Sun, o álbum de 1987. Este retrato de Brian Aris foi tirado durante as gravações do disco, nos Air Studios, em Montserrat, eventualmente no dia em que morreu Audrey, a mãe de Sting. “Despedi-me da minha mãe, pois tinha as datas de estúdio marcadas em Montserrat, e ela morreu uma semana depois”, conta o músico.
No disco não se antecipariam particulares ligações do britânico à imagem – é o autor que nos aponta esse caminho, no livro publicado em 2021. À pergunta sobre se a sua mãe teria uma ligação particular com Maria, e que por isso teria escolhido a foto, Sting respondeu: “Não, mas eu tinha.” A imaginação deste ícone rock foi moldada pelo seu cristianismo, como se lê no subtítulo da obra de Marienberg. O autor de Sting & Religion descreve os dois pilares do livro: a micro-história de uma paróquia católica britânica, nos anos 1950-60, e o impacto que teve na sua produção artística o ambiente no qual cresceu.
Gordon Matthew Sumner, nome próprio de Sting, nasce em 1951 em Wallsend, pequena cidade nas proximidades de Newscastle upon Tyne, no nordeste de Inglaterra. Estuda em escolas católicas na Inglaterra anglicana, recebe a primeira comunhão aos 7 anos, em 1959, era João XXIII o papa, e a confirmação em 1965, no momento em que Roma se preparava para a sessão final do Concílio Vaticano II, já com o Papa Paulo VI. O pai era católico, apenas “nominalmente”, segundo o filho, e a mãe uma fiel da Igreja de Inglaterra, ou seja, anglicana. O casamento “misto” dos dois obrigou (como ainda hoje) a uma autorização do bispo católico para o pai de Sting casar com uma não-católica.
É neste ambiente que cresce Sting que, nos dias de hoje, avisa Marienberg, já não se considera católico. “Ele não é, no entanto, um ateu. Noções espirituais de vários tipos são importantes para ele, e motivos e ideias religiosas são evidentes em algumas das suas canções. Tanto na sua infância católica como influências posteriores desempenharam papéis importantes no desenvolvimento da sua visão espiritual do mundo”, descreve o académico, num texto publicado num site que acompanha o livro (com o mesmo nome).
O ouvinte atento das suas letras identifica temas religiosos nas canções, com particulares referências à Bíblia e ao cristianismo. É Paul Carr (professor de Análise de Música Popular, na Universidade de Gales do Sul, em Cardiff) que aponta para o facto de este livro oferecer uma nova leitura “sobre como o catolicismo da juventude de Sting alimentou a sua criatividade”. O autor, Evyatar Marienberg, faz finca-pé neste ponto, em cada uma das 215 páginas bem-nutridas do livro: “Os textos de Sting – e não tanto a sua música ou o seu estilo de performance – estão entre as principais fontes para entender os seus pensamentos sobre a Bíblia, o catolicismo e a religião em geral.”
É o que nos propõe Marienberg nesta obra, que se divide numa introdução e em seis capítulos, traçando o percurso de Sting, através das letras das suas canções, recorrendo a entrevistas do autor com o cantor e músico e a uma investigação de documentação e conversas com muitos que se cruzaram no caminho do jovem Gordon. Três dos capítulos são gastos a escalpelizar as letras de Sting (“A Bíblia…”, “o Catolicismo…” e “a Religião e espiritualidade no trabalho de Sting”), entrecortados por outros dois que se debruçam sobre a “micro-história” da comunidade em que cresceu o músico, que para Marienberg ajuda a contar melhor a relação de Sting com a religião.
Para o cantor e músico britânico, “não ter fé em nada é estar muito perto da loucura”. “Há um certo tipo de existencialista do final do século XX que não acredita em nada, apenas numa figura escura numa gabardine, que é um tipo de imagem romântica que adotamos no cinema e em outros lugares. Mas eu não quero ser essa pessoa, não acho que isso seja muito útil. Tens de acreditar em algo.”
As palavras de Sting replicadas por Marienberg complementam-se com outra epígrafe do livro: “Na verdade, estou bastante grato por [ter tido] uma educação católica. Acho que é uma grande fonte de simbolismo e imagens, de culpa, sangue, morte, condenação eterna – todos eles, ótimos para escrever.”
No site do livro, Evyatar Marienberg enumera um conjunto de “músicas recomendadas” deste universo, “uma pequena seleção das muitas canções na produção de Sting que têm algum conteúdo religioso”, como se explica. A abrir está a óbvia Gabriel’s Message, uma canção natalícia tradicional basca, que narra o episódio da anunciação do anjo Gabriel a Maria, e que Sting começou por cantar no lado B de Russians (o single de 1985), recuperou para a coletânea A Very Special Christmas (1987) e por fim gravou no seu disco de 2009, If on a Winter’s Night…
The Last Ship (2011), o tema que se segue nesta escolha pessoal de Marienberg, “inclui uma das referências mais explícitas e elaboradas de Sting à Bíblia em muitos anos”, como descreve o autor do livro. A letra da canção começa com uma referência ao episódio dos evangelhos, num domingo de Páscoa, em que Madalena se dirige ao túmulo onde o corpo de Jesus foi depositado e o encontra vazio:
O terceiro tema partilhado pelo autor do livro é O My God (1975), uma das primeiras gravações em que Sting manifesta “sentimentos religiosos”, gravada com a sua primeira banda, Last Exit. No entanto, a versão que se ouve no site é do álbum Synchronicity (1983), dos Police – o grupo que o tornaria famoso – que mantém muitos dos versos da canção original mas tem menos semelhanças sonoras com os Last Exit. Nessa primeira banda que integrou, Sting escreveria outras canções também com “referências religiosas”. Na única gravação oficial disponível deste grupo de Newcastle, há dois temas de Sting com essas marcas, O My God, e Carrion Prince, dedicado a Pôncio Pilatos, o governador romano que condenou Jesus à morte, a pedido dos judeus.
Apesar de O My God em Synchronicity, Sting não explorou muitas referências religiosas nas canções escritas nos seus tempos dos Police (Stewart Copeland e Andy Summers, os outros membros, não eram católicos).
Marienberg apresenta-nos depois All This Time, de novo no período a solo do artista britânico, que surge pela primeira vez no álbum The Soul Cages (1991), um disco marcado pela morte do pai, tanto como o álbum anterior (Nothing Like the Sun, 1987) tinha sido marcado pelo desaparecimento da mãe: o catolicismo do pai ganha um “lugar especial, ainda que nem sempre positivo” neste disco.
Esta “canção intrincada” e “notável”, como o autor classifica All This Time, é acompanhada de uma “narrativa bastante complexa e sombria”, que no caso é também decomposta à exaustão por Evyatar Marienberg. São cinco páginas de leituras cruzadas entre a letra escrita por Sting e textos bíblicos e enquadramentos sociais e históricos, que permitem desvendar a intrincada teia tecida pela escrita do compositor, músico e cantor britânico e a sua formação católica. Uma amostra do que é o livro.
Há uma permanente luta entre o jovem Gordon, que cresceu sob o manto da Igreja Católica, e o adulto que escreve canções. Sting diz que Soul Cages foi a forma que encontrou de ele próprio “trabalhar com as coisas”, em vez “de confiar em ideologias de massa”.
Dois anos depois, em 1993, numa entrevista sobre o disco, a dúvida instalava-se sobre aquilo que é a (sua) fé, resvalando ainda mais para uma clássica (e, porventura, cada vez mais acentuada) dicotomia entre as instituições – com vários “altares” – e aquilo que se acredita. “A canção If I Ever Lose My Faith in You é uma declaração sobre, suponho, as minhas crenças. É que eu tinha perdido muita fé nas instituições, que foram projetadas para nos sustentar, como governos, igreja, televisão. E, no entanto, ainda mantenho a fé na própria vida, ainda mantenho um sentimento de esperança e de otimismo, mesmo que seja mais difícil de definir do que as coisas que perdi. Assim, defino com muito cuidado as coisas em que perdi a fé e defino muito vagamente aquelas em que mantenho a fé.”
Esta If I Ever Lose My Faith in You é também uma das canções recomendadas por Marienberg, mesmo que, como nota o autor, “contenha apenas um óbvio verso sobre o catolicismo” – “You could say I lost my belief in the holy Church” (“Tu poderias dizer que eu perdi a minha crença na santa Igreja”) – e o “you” do título pode referir-se a uma pessoa amada, não a uma entidade divina.
Os outros temas recomendados – Sacred Love (2003), Whenever I Say Your Name (2003), Rock Steady (1987) e The Book of My Life (2003) – são mais quatro pretextos para este breve roteiro por temas, que são uma pequena montra do que se pode encontrar em Sting & Religion, com um detalhe, um rigor e uma curiosidade que transcendem o cantor e músico britânico. E há ainda uma página que inclui a lista de todas as músicas mencionadas no livro, com links para as suas letras e para um vídeo/áudio de amostra — com uma playlist no YouTube!
O livro é de um admirador confesso da obra de Sting, mas nunca perde de vista o seu objeto de estudo, de forma fundamentada e sustentada, com pormenores e histórias que deliciam e completam a música que se ouve. Talvez os fãs se sintam tentados a procurar de forma mais ávida este livro, mas todos aqueles que gostam de música não darão o seu tempo por perdido.
(Sobre a nova versão de Russians, de Sting, pode ler-se este texto no 7MARGENS.)
Sem comentários:
Enviar um comentário