O Papa Francisco admitiu neste sábado, em declarações aos jornalistas durante o voo para Malta, que uma eventual viagem a Kiev é “uma proposta em análise”. O Papa está no pequeno país do Mediterrâneo desde sábado e ali permanece até este domingo, 3 de Abril.
Sem adiantar mais pormenores, a hipótese da viagem do Papa poderia, desse modo, responder ao desejo já manifestado pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e pelo presidente do município de Kiev, Vitaliy Klitschko. Zelensky falou com o Papa dia 22 de Março, manifestando a vontade de receber Francisco, e o autarca da capital ucraniana disse, duas semanas antes, que a presença do Papa na cidade seria “fundamental para salvar vidas” e solidificar o “caminho para a paz”.
Antes da partida, ainda na manhã de sábado, o Papa encontrou-se com um grupo de famílias ucranianas, acolhido em Itália pela comunidade católica de Santo Egídio e pelo esmoler pontifício, cardeal Konrad Krajewski.
No grupo, conta a Ecclesia, havia três mães com crianças entre os 5 e os 17 anos, além de uma família que incluía mãe e pai, três filhos e uma avó destes, com 75 anos.
No voo para Malta, Francisco recebeu ainda um quadro, pintado por Daniel Jude Okeoguale, um refugiado com quem se encontrará neste domingo. Okeoguale sobreviveu a um naufrágio, no Mediterrâneo, e evoca na obra todos os que morreram na mesma viagem e ele não conseguiu salvar.
Já no seu primeiro discurso em Malta, o Papa evocou as “trevas da guerra” que ameaçam a Europa, alertando para uma possível “Guerra Fria alargada”.
“Pensávamos que invasões doutros países, combates brutais pelas estradas e ameaças atómicas fossem sombrias recordações dum passado distante. Mas o vento gélido da guerra, que só traz morte, destruição e ódio, abateu-se prepotentemente sobre a vida de muitos e sobre os dias de todos”, afirmou, no Palácio do Grão-Mestre, perante autoridades políticas e representantes da sociedade civil.
“Foi precisamente do leste da Europa, do Oriente onde primeiro aparece a luz, que chegaram as trevas da guerra”, acrescentou o Papa. “Mais uma vez, um poderoso qualquer, tristemente fechado em anacrónicas reivindicações de interesses nacionalistas, provoca e fomenta conflitos”, afirmou, em mais uma referência implícita ao Presidente russo, Vladimir Putin.
“Quanto precisamos duma ‘medida humana’ face à agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, frente ao risco ‘Guerra Fria alargada’, que pode sufocar a vida de gerações e povos inteiros”.
Alertando para o agravamento da emergência migratória, com os refugiados da “martirizada Ucrânia”, pedindo “respostas amplas e partilhadas”, o Papa acrescentou: “Não podem apenas alguns países arcar com o problema inteiro, na indiferença de outros! Nem podem países sancionar, para seu próprio interesse, acordos obscuros com criminosos que escravizam as pessoas. Infelizmente, isto acontece.”
Criticando as “seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na agressividade disseminada”, Francisco lamentou: “Há tempos que a guerra tem vindo a ser preparada, com grandes investimentos e comércio de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, surgido depois da II Guerra Mundial, se enfraqueceu nas últimas décadas, bem como o percurso da comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência.”
No discurso, o Papa referiu ainda que o exemplo de Malta, no coração do Mediterrâneo, pode inspirar todos, lembrando que “a paz gera bem-estar, e a guerra só pobreza”.
“Precisamos de compaixão e cuidados, não de visões ideológicas e populismos, que se alimentam com palavras de ódio e não levam a peito a vida concreta do povo, da gente comum”, apelou, recordando também as crises no Médio Oriente, “o Líbano, a Síria, o Iémen e outros contextos dilacerados por problemas e violência”.
Migrações, “dívidas de injustiças passadas”
Para Francisco, os problemas globais requerem soluções globais, num diálogo “cada vez mais alargado”. Por isso, apelou: “Voltemos a reunir-nos em conferências internacionais pela paz, onde o tema do desarmamento seja central, com o olhar fixo nas gerações vindouras! E que os enormes fundos que continuam a ser destinados para armamentos sejam aplicados no desenvolvimento, na saúde e na alimentação.”
No mesmo discurso, o Papa referiu-se ainda à crise migratória que representa as “dívidas de injustiças passadas”, com a exploração de povos e recursos naturais.
“O fenómeno migratório não é uma conjuntura do momento, mas marca a nossa época. Traz consigo as dívidas de injustiças passadas, de tanta exploração, de mudanças climáticas, de desditosos conflitos cujas consequências se pagam”, afirmou, citado ainda pela Ecclesia.
Apelando à corresponsabilidade europeia, para gerir as “massas de pessoas” que se deslocam para o norte, o Papa disse que a migração é “um dado real, que não se pode enjeitar com anacrónicos fechamentos, porque não haverá prosperidade nem integração no isolamento”.
“O Mediterrâneo precisa de corresponsabilidade europeia, para voltar a ser teatro de solidariedade e não a dianteira dum trágico naufrágio da civilização. O mare nostrum não pode tornar-se o maior cemitério da Europa”, acrescentou ainda, agradecendo a Malta e à sua população o acolhimento que oferecem aos refugiados, “em nome do Evangelho, da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses”.
Em 2021, quase dois mil migrantes desapareceram ou afogaram-se no Mediterrâneo – um aumento face aos 1401 em 2020, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações citados pela Ecclesia.
Esta é a primeira viagem internacional do Papa em 2022 e acontece depois da passagem de Francisco pelo Chipre e Grécia, com visita à ilha de Lesbos, em Dezembro.
O lema escolhido para a viagem – prevista para 2020 e adiada por causa da pandemia – é uma frase dos Actos dos Apóstolos (Actos 28, 2): “Trataram-nos com extraordinária humanidade”, que evoca o naufrágio do apóstolo Paulo, no ano 60, e que daria início à evangelização da ilha. A ilha já recebeu as visitas de João Paulo II, em 1990 e 2001, e de Bento XVI, em 2010. O Papa regressa a Roma neste domingo, 3, ao final do dia.
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