A Jornada da Família deste domingo foi o maior evento popular
italiano desde a Resistência ao nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial
Existe uma imagem memorável na história do cinema de animação da
Disney. Em “Os 101 Dálmatas”, quando se espalha a notícia do rapto dos
cãezinhos por uma megera fanática por peles, toda a comunidade canina de
Londres começa a emitir insistentes e peculiares uivos que, no coração
da noite, se transformam num verdadeiro grito colectivo de emergência.
Tem início então uma corrida de solidariedade para salvar a nutrida
ninhada de filhotes indefesos, que, graças a uma improvisada, mas feroz
força-tarefa, consegue levar a história rocambolesca a um final feliz,
devolvendo aos pequenos o direito de ser criados pela mamãe e pelo
papai.
Essa animação, que encantou os filhos de três gerações, tem um forte
valor pedagógico: quando está em perigo a segurança e a dignidade das
crianças, dispara o alarme vermelho, a comunidade se move, cada
indivíduo para de pensar somente em si e entende que, ao lado do “eu”,
existe um “nós”, que representa o bem comum.
Nos últimos 2 ou 3 anos, na Itália, foi posto em marcha um mecanismo
parecido. Ideologias muito questionáveis, em nome do alegado direito de
uma restritíssima elite, vêm questionando dois direitos fundamentais das
crianças: o de ser criadas e educadas por um casal formado por homem e
mulher, sem se tornarem objecto de comércio e de lucro.
Muitas famílias em todo o país criaram uma rede de solidariedade
entre si, dissipando o estereótipo da família italiana como um “ente auto-referencial”, ou pior ainda, como um “clã” amoral, portador de
valores e princípios em concorrência com os da sociedade civil.
Utilizando a grande caixa de ressonância das redes sociais, milhares
de mães italianas trabalharam em equipe, levando a sério o destino não
só de seus filhos, mas de centenas de milhares de outras crianças. Um fenómeno que envolveu a todos, inclusive pessoas com filhos já crescidos
ou sem filhos; inclusive jovens que ainda acreditam num futuro melhor
para si e para os filhos que terão; inclusive homossexuais, que talvez
nunca tenham filhos e que, em todo caso, rejeitam as técnicas de
procriação que a ciência torna disponíveis hoje.
Após uma fase inicial, marcada pelo pânico e pela apreensão de
muitos, veio o momento da decisão e da acção: nasceram a Manif Pour Tous
Itália (mais tarde rebaptizada de Geração Família), as Sentinelas em Pé e
outras comissões dispostas a conter os avanços da teoria de género. E o
sucesso não faltou: projectos de lei contra uma alegada homofobia
genérica foram arquivados e várias administrações regionais (Lombardia,
Vêneto, Ligúria, Abruzzo, Basilicata) deixaram de lado a ideologia de género nos currículos escolares.
Longe de continuar sendo vozes isoladas e sem coordenação entre si,
as várias associações conseguiram milagrosamente criar sinergias e
evitar protagonismos. Juristas, psicólogos e educadores começaram a
percorrer as paróquias e escolas da Itália para sensibilizar os menos
informados. A maioria dos meios de comunicação desdenhou o fenómeno, mas
não faltaram órgãos da imprensa (Zenit é um deles) que prestaram atenção
e deram voz aos líderes do movimento nascente.
De poucos milhares de participantes nos primeiros eventos em 2013,
chegou-se a dois milhões neste domingo no Circo Massimo, em Roma. Um
evento popular que não teve a intervenção de nenhuma grande potência,
nem da política, nem da Igreja. Nem os partidos, nem os bispos, nem os
movimentos de leigos (excepto o Caminho Neocatecumenal) desempenharam
papel-chave na mobilização; aliás, em alguns casos, o cepticismo
prevaleceu até recentemente.
Os primeiros gestos de apoio episcopal e parlamentar em oposição ao
projecto de lei sobre uniões civis homossexuais só começaram após as
manifestações de 20 de Junho de 2015 na Piazza San Giovanni, em Roma,
quando os números começaram a se tornar “oceânicos”.
Agora que começa a discussão no parlamento, a responsabilidade está
inteiramente nas mãos da política. Alguns senadores de centro-esquerda,
provavelmente indecisos, serão os fiéis da balança: em suas mãos não
está simplesmente a aprovação de um projecto, mas o destino de um país
que ainda pode ser salvo de perigosos desvios antropológicos e
educacionais, cujas verdadeiras consequências são muito difíceis de
prever.
O movimento que está ganhando terreno é anti-ideológico, apolítico,
aconfessional e intergeracional, mas a presença dos muito jovens e das
famílias “sub 40” é significativa e predominante. No entanto, não se
trata de um “novo 68” ou um “’68 ao contrário”.
O protesto estudantil de meio século atrás era o resultado de uma
mudança originada de doutrinação mais ou menos subtil, operada por elites
intelectuais da época sobre as gerações mais jovens. O fenómeno encheu
as praças, mas seus números nunca foram comparáveis aos do Circo
Massimo nem aos da Champs-Elysées, em Paris, preenchida pelos franceses
em oposição à lei Taubira, equivalente em seu país ao projecto italiano
pró-agenda de género e aborto.
Estamos, portanto, diante do maior evento popular já registado na
Itália desde os tempos da Resistência ao nazi-fascismo. Setenta anos
atrás, lutava-se pela liberdade do país; hoje, luta-se pela própria
identidade do país, pelas bases naturais sem as quais uma sociedade se
torna susceptível de uma implosão pavorosa.
O facto é que a política está enfrentando hoje um divisor de águas:
ouvir ou não ouvir o povo? Como em 1943-1945, estão em jogo a democracia
e a liberdade de um país. Acima de tudo, porém, está em jogo a sua
humanidade.
in
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