O desonesto contemporâneo vai além do hipócrita. Ele não admite
nenhum critério, nenhuma direcção, que possa permitir qualquer julgamento objectivo no campo da ética. São como monstros espirituais que elegeram a
monstruosidade como padrão estético.
Não há dúvida de que o tema da corrupção está na linha de frente do
nosso noticiário. Há, hoje, poucos membros do Ministério Público ou da
Magistratura que não estejam ocupados com o tema, seja trabalhando directamente com ele, no combate frontal, seja debatendo-o, seja de
alguma forma apoiando aqueles que estão dedicados ao combate, acumulando
o serviço burocrático que eles deixaram para trás, de modo a
possibilitar que eles possam dedicar-se a esta actividade.
As coisas não eram assim há vinte e cinco anos, quando eu entrei no
Ministério Público. Muitos temas ocupavam então a pauta de uma jovem
Constituição Federal: destaco a nossa empolgação, à época, com as
novidades do direito ambiental, da defesa do consumidor, da protecção a
crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e a consolidação da
cidadania de modo geral, numa época, como aquela, de redemocratização
recente e de optimismo cívico. Hoje, todos estes temas ainda nos ocupam,
mas a questão da corrupção sem dúvida destaca-se como central na nossa
actuação.
Não por coincidência, mas porque este tema tem relevância para o
mundo inteiro, o Papa Francisco vem chamando a atenção de todos para a
questão da corrupção, mas a partir de um ponto de vista muito mais
profundo do que aquele que norteia nossa actuação judicial. Este tema
está no capítulo sétimo de seu livro de entrevistas lançado agora, mas
já vinha sendo repetido e destacado por ele em pronunciamentos e
homilias desde o início do seu pontificado. Destaco a homilia de 11 de Novembro de 2013, em que ele apontou muito claramente a diferença entre
os pecadores, que somos todos nós, e os corruptos, aqueles que
mergulharam na hipocrisia e são incapazes de arrependimento e de
mudança. O Papa dizia:
“A diferença é quem peca e se arrepende, pede perdão, se sente
fraco, se sente filho de Deus, se humilha, e pede a Jesus a salvação.
Mas quem escandaliza não se arrepende. Continua a pecar, mas faz de
conta que é cristão: uma vida dupla. E a vida dupla de um cristão
provoca muitos danos”.
O Papa Francisco afirmava muito duramente que o corrupto é aquele que
é capaz de ir à Igreja, de declarar-se a favor dos pobres, mas com a
outra mão rouba do estado, rouba dos mais pobres. “Aqui não se fala de perdão”, pois quem faz vida dupla é um corrupto e está preso num estado de suficiência, “não sabe o que é a humildade”. O Papa lembrava que Jesus falava deles como de um “sepulcro caiado”, ou seja, externamente belos, mas podres por dentro.
“Todos nós conhecemos alguém que está nesta situação e quanto mal
faz à Igreja! Cristãos corruptos, padres corruptos… Quanto mal provocam à
Igreja! Porque não vivem no espírito do Evangelho, mas no espírito
mundano”.
Na Carta aos cristãos de Roma, São Paulo dizia para não entrar nos
esquemas, nos parâmetros deste mundo – esquemas que levam à vida dupla:
“Uma podridão ‘vernizada’: esta é a vida do corrupto. E Jesus não
os chamava simplesmente de pecadores, mas de ‘hipócritas’. Com os
outros, os pecadores, Jesus não se cansa de perdoar, com a condição de
que não façam esta vida dupla. Peçamos hoje a graça ao Espírito Santo de
nos reconhecer pecadores. Pecadores sim, corruptos não”.
Motivado por estas palavras de Francisco, resolvi aprofundar minhas
pesquisas sobre a honestidade; para minha surpresa, descobri que eu não
conseguiria definir com muita precisão o que é a honestidade. Minha
concepção de honestidade ia pouco além de uma vaga ideia de
autenticidade, de sinceridade, de capacidade de viver coerentemente com
os próprios princípios e de falar abertamente sobre aquilo em que
acredita. Mas isto é muito pouco. Na minha já longa carreira
profissional, conheci muitos criminosos perigosos que, marcados pela
psicopatia, eram capazes de uma enorme autenticidade: falavam claramente sobre os crimes que cometeram e viviam uma profunda coerência
com seus próprios instintos destrutivos. Alguns desenvolveram uma
escala própria de valores extremamente coerente, como aqueles que só
roubavam de ricos ou só matavam “bandidos emprestáveis”. Não
foram poucos os empresários sonegadores, defraudadores e lavadores de
dinheiro que processei e que eram capazes de fazer uma defesa lúcida e
coerente de suas próprias condutas fraudulentas a partir de postulados
de teoria económica ou política, e de transformar sua sonegação numa
espécie de manifesto de resistência aos “maus políticos” ou à “má
política económica”, ou mesmo à “sobrevivência do capitalismo” ou à
“liberdade de iniciativa” ou de “oportunidade”, como ouvi, uma certa
feita, de um réu que comandava uma quadrilha de tráfico internacional de
pessoas. Honestidade deve ser algo a mais do que autenticidade,
coerência ou franqueza, portanto.
Movido pelas palavras do Papa, mergulhei no estudo do pensamento
cristão mais antigo e, para minha surpresa, encontrei uma bela defesa da
honestidade numa página de São Tomás de Aquino, da sua impressionante
“Suma Teológica”. Ali, Tomás relaciona a honestidade à temperança, e a
define como um “beleza espiritual”; essa definição estética da
honestidade me surpreendeu. Tomás relaciona a honestidade com a
proporção delicada e admirável do equilíbrio que adquire uma pessoa
virtuosa. Ou seja, a honestidade é a capacidade de admirar e louvar as
qualidades da virtude, bem como a alegria contemplativa de ter virtudes e
agir em conformidade com elas. Uma capacidade estética muito mais
profunda, portanto, do que aquela parte da estética que se preocupa
apenas com a aparência das coisas e das pessoas. Trata-se, pois, de
amar, em si mesmo, aquilo que é bem proporcionado, justo, pensado,
ponderado e medido, e buscar viver em coerência com essa bela medida
espiritual. Neste sentido, a honestidade pode e deve ser aprendida e
ensinada. E relaciona-se, segundo Tomás de Aquino, com a virtude da temperança. Diz Tomás:
“chama–se honesto ao que tem uma certa beleza subordinada à razão.
Ora, o ordenado segundo a razão é naturalmente conveniente ao homem.
Pois, cada um naturalmente se deleita com o que lhe é conveniente. Por
isso, o honesto é naturalmente deleitável ao homem, como o prova o
Filósofo ao tratar dos actos de virtude.” (S. Th, II, II, Q. 145).
O hipócrita, pois, é alguém que de certo modo ainda paga um “tributo”
à estética da honestidade: quer “salvar” as aparências externas da
beleza que não possui no seu interior. Considera-se, pois, justificado
por cultivar uma vida cercada de confortos e riquezas, como uma espécie
de “maquilhagem” da sua desarmonia interior, ainda que isto se dê às
custas de sua probidade, da lisura no tratamento dos bens de terceiros
ou dos bens públicos, do prejuízo aos mais fracos ou mais pobres, ou
mesmo à colectividade.
O desonesto contemporâneo, no entanto, vai além do hipócrita. Ele nem
sequer admite que haja, objectivamente, qualquer possibilidade de
desenvolver uma beleza espiritual, porque não admite nenhum critério, nenhuma direcção,
que possa permitir qualquer julgamento estético no campo da ética. São
desprovidos não somente da virtude, mas da própria ideia de que algo
como o bem possa existir fora do campo da sua própria vontade.
São monstros espirituais que elegeram a monstruosidade como padrão
estético, e portanto até podem, muito autenticamente (segundo pensam),
proclamar-se como “honestos”. Neste sentido, eles vão além da hipocrisia
denunciada pelo Papa como raiz da corrupção: estragam os padrões
estéticos de honestidade de gerações e gerações – formam nossas crianças
e jovens para nem sequer serem hipócritas, mas verdadeiros “cegos
morais”; adoptam a monstruosidade ética como padrão de beleza e criam
monstrinhos que se acham lindos. E em seguida proíbem os espelhos e
denunciam a verdadeira estética espiritual como “intolerância” ou
“imposição religiosa”. Não é. Se fosse, não haveria tanta revolta no
mundo inteiro, igualmente compartilhada entre ateus, agnósticos e fiéis
das mais diversas culturas e religiões, contra a corrupção que assola
nosso dia-a-dia.
Estabelecer a deformação espiritual como padrão estético, pela
promoção da intemperança e da incontinência como virtude, como ocorre
hoje na nossa educação formal e nos nossos meios de comunicação, não
transforma a “autenticidade” em honestidade, apenas multiplica a
corrupção e a transforma no problema epidémico em que ela se tornou
hoje, porque destrói os critérios. Junto com a honestidade vai embora
aquela outra postura que Tomás de Aquino aponta como pressuposto
necessário à virtude, que é a capacidade de envergonhar-se (S.
Th. II-II, Q. 144). Lembro-me das mães de antigamente, que, ao
corrigirem seus filhos, diziam simplesmente: “que feio o que você fez!”.
Temos que defender essa velha estética.
in
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