Reflexões para o ano da fé a partir de Santo Tomás de Aquino e Bento XVI
Roma, 14 de Outubro de 2013
Estamos vivendo o ano da fé, pensado por Bento XVI como «uma
ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo
de particular reflexão e redescoberta da fé»[i]. Nesse período
cada fiel deve procurar aprofundar na própria vida de fé para poder
comunicá-la mais eficazmente. «A fé cresce quando é vivida como
experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça
e de alegria»[ii]. Mas com frequência surge uma dúvida: é
realmente possível crescer na fé? Não é verdade que distinguimos
simplesmente entre os que têm fé e os que não a tem?
Depende de como se entende a fé. Ela é essencialmente uma relação
entre Deus e o homem. Deus se revela livremente doando-se ao homem, no
tempo estabelecido por Ele. E o homem é livre para aceitá-lo ou não. A
fé é, pois, um dom divino e uma resposta humana. O objecto da fé (Tomás
de Aquino chamava de “razão formal”) é a verdade primeira, ou seja, a
afirmação da existência e da Providência divina[iii]. Nesse
sentido, o primeiro acto de fé é crer que «Deus existe e recompensa os
que o buscam» (Heb. 11, 6). E assim se distingue simplesmente os que
acolheram o dom fé e os que ainda não.
Todavia a “razão material” da fé é Deus mesmo e as outras realidades
ordenadas a Ele. Isso significa que a realidade na qual se crê é
simples: é Deus mesmo. E como a fé é um ato humano, de conhecimento
amoroso de Deus, esse ato deve ser bem entendido. Pois o homem conhece
diversamente de Deus e dos anjos. Deus conhece as realidades compostas
num ato simples: Ele, ao pensar a si mesmo, apreende todas as coisas
complexas. O homem, por sua parte, conhece as realidades simples (como o
ser de Deus), por meio de muitos actos complexos. O conhecimento da
verdade por parte do homem é sempre discursivo, parcial, ou seja,
depende da simples apreensão da realidade, dos juízos e dos raciocínios.
O homem apreende então o simples por meio do complexo, e Deus conhece o
complexo na Sua simplicidade. Podemos conhecer a Deus a partir das suas
criaturas e do que é revelado por Ele. Mas Deus se revela através de
muitas palavras: os diversos enunciados da fé. Em outras palavras, a
partir da perspectiva do que é conhecido pela fé, o objecto da fé é o ser
simplicíssimo de Deus. E a partir do ponto de vista de quem crê, o objecto da fé é composto, são os diversos enunciados da fé, que
correspondem ao modo humano de conhecer[iv].
Os principais enunciados da fé se encontram reunidos nos chamados Símbolos,
compostos por artigos. Os artigos são as partes distintas que devem ser
unidas. Artigos e símbolo se relacionam como os membros de um corpo e o
mesmo corpo[v]. Aceitar a fé cristã implica aceitar o símbolo de
fé completo, sem mutilações. Os artigos são ordenados entre si, pois há
alguns anteriores a outros. Para se crer na ressurreição de Cristo, por
exemplo, é necessário aceitar a sua morte; para se crer na sua morte, é
necessário crer antes na sua Encarnação. Os artigos de fé se reduzem a
um só: crer em Deus e na sua Providência (Heb. 11, 6). Pois no ser
divino estão incluídas todas as realidades que acreditamos existir
eternamente nele; e a fé na Providência inclui aceitar todos os meios
que Deus tem para nos levar à nossa felicidade.
A fé pode então crescer? Depende. Se se refere ao objecto formal da
fé, que é único e simples (a verdade primeira) a fé não pode variar nos
fiéis: ou se aceita o ser e a acção de Deus ou não. No que se refere ao objecto material da fé, ou seja, às verdades propostas aos fiéis, essas
são múltiplas e podem ser acolhidas de modo mais ou menos explícito.
Nesse sentido, um fiel pode crer em mais coisas do que outros e pode
haver uma fé maior em base ao conhecimento mais profundo das verdades de
fé.
Além disso, a fé se distingue segundo os diversos modos nos quais as
pessoas a aceitam. Pois o ato de fé provém da inteligência e da vontade.
Pode haver uma maior ou menor certeza e firmeza ao aderir a uma verdade
de fé, assim como uma maior prontidão, devoção e confiança em Deus[vi].
Pode-se crescer na fé então na medida em que se procura conhecer
melhor os seus conteúdos, de modo a aderir a eles com maior convicção,
amor e confiança. «Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma
autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo»[vii].
E a fé é um ato primeiramente intelectual, mas deve formar toda a vida
cristã. Em palavras de Bento XVI: «Em virtude da fé, esta vida nova
plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da
ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e
os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a
pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais
completamente terminado nesta vida. A “fé, que actua pelo amor” (Gl 5,
6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a
vida do homem»[viii].
[i] Bento XVI, Porta Fidei, n. 4.
[ii] Ibidem, n. 7.
[iii] São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II,q. 1, a. 1.
[iv] Ibidem, II-II, q. 1, a. 2.
[v] Ibidem, II-II, q. 1, a. 6.
[vi] Ibidem, II-II, q. 5, a. 4.
[vii] Bento XVI, Porta Fidei, n. 4.
[viii] Cfr. Ibid; Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17.
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