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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

“Barrigas de aluguer”: ONU vai debater a sua erradicação

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A prática da barriga de aluguer “está em ascensão em todo o mundo” e não conhece fronteiras. Foto © Africa images

Ofende direitos das mulheres e das crianças

 | 02/09/2025

A prática da barriga de aluguer constitui uma forma de exploração e de violência contra as mulheres e as crianças, pelo que se deveria caminhar para a sua abolição e erradicação. Quem o afirma é a relatora especial da ONU sobre a violência contra as mulheres e as meninas, Reem Alsalem, num documento que vai ser apresentado na 80ª Assembleia Geral daquela Organização, a realizar em Nova Iorque, a partir do próximo dia 9.

Para a elaboração do seu trabalho, a relatora especial recebeu aproximadamente 120 contributos de diversas partes do mundo, realizou consultas online com 78 especialistas e pessoas envolvidas no fenómeno das barrigas de aluguer (pais contratantes, agências da área, médicos e mulheres que passaram pela experiência da barriga de aluguer).

Considera-se barriga de aluguer uma prática na qual uma mulher (a “mãe de substituição”) engravida e gera um filho para outra pessoa ou casal.  Esses arranjos podem ser feitos diretamente ou através de uma clínica ou agência especializada. No relatório, usam-se expressões como “mãe de aluguer” e “mãe sub-rogada”, mas recusa-se a de “pessoa gestante”, visto que esta última que pretende ser neutra em termos de sexo e género, “reduz as mulheres à sua função reprodutiva”, coisificando-as.

Segundo a especialista da ONU, a prática da barriga de aluguer “está em ascensão em todo o mundo” e não conhece fronteiras, sendo uma parte significativa entre candidatos a pais de países mais ricos, que contratam barrigas de aluguer em países onde a prática é permitida por lei.

 

Negócio de muitos milhares de milhões de euros

Em termos quantitativos, e segundo a fonte que vimos citando, em 2023, o mercado global de barrigas de aluguer foi avaliado em 14,95 mil milhões de dólares, havendo projeções a dez anos que o catapultam para o 99,75 mil milhões (ou seja, cerca de 85 mil milhões de euros) até 2033.

As barrigas de aluguer recebem, em geral, apenas uma pequena fração da remuneração total, dado que a maior parte dos valores pagos vão para intermediários. Algumas informações citadas pela autora, Reem Alsalem, apontam para percentagens entre os 10 e os 27,5 por cento que iriam parar às mães de aluguer.

Do ponto de vista regulamentar e de políticas estatais da “reprodução sub-rogada”, as situações são de enorme diversidade, indo da proibição expressa, como ocorre em vários países da Europa ocidental, à regulação e reconhecimento “de forma completa ou limitada, de arranjos de carácter altruísta”, passando pela inexistência de regulação, traduzida muitas vezes em ambiguidade jurídica.

“Em todo o mundo – faz notar o relatório da ONU – a maioria das mães de aluguer vêm de origens de baixos recursos e têm um status social mais baixo do que os pais que contratam a barriga”, sendo que “muitas não têm acesso a recursos legais ou mecanismos eficazes de defesa”. Do lado da ‘procura’, nota-se que ela é frequentemente motivada por estereótipos racistas e pós-coloniais, visto que mulheres jovens, brancas, ocidentais e com alto nível educacional recebem até 100 vezes mais pelos seus óvulos do que outras mulheres”.

O comércio dos óvulos tem, assim, de ser colocado ao lado do aluguer da hospedeira da gestação, para se compreender as lógicas e interesses que estão em jogo no fenómeno em análise, com implicações emocionais, sociais, económicas e de saúde. “O recrutamento – explica o documento da ONU –  é frequentemente impulsionado por publicidade online que apresenta a doação de óvulos como um ato altruísta e lucrativo, omitindo informações vitais sobre o desconforto das injeções hormonais de rotina e os efeitos colaterais e riscos prejudiciais, como complicações anestésicas, síndrome de hiperestimulação ovárica ou a complexidade emocional de abrir mão de um filho biológico. Mulheres relatam não receber serviços de saúde após a doação”. Acresce que muitas mulheres, especialmente raparigas, são recrutadas para se registarem como doadoras de óvulos para testar a sua tolerância a procedimentos médicos antes de entrarem num acordo de barriga de aluguer”.

 

Direitos das mulheres e das crianças espezinhados

Reem Alsalem Foto UN Photo Rick Bajornas

Reem Alsalem, relatora especial da ONU sobre a violência contra as mulheres e as meninas. Foto © UN Photo/Rick Bajornas

 

O relatório pormenoriza, ao longo de várias páginas, mecanismos e processos de exploração das mulheres. Em muitos casos, ficam impedidas de gozar licenças de parto e de ter assistência durante a gravidez; noutros casos, são vítimas de tráfico forçado para outros países, para prestação de “serviços reprodutivos”; veem-se reduzidas apenas às suas funções reprodutivas, e em situações de crescente marginalização e vulnerabilidade, nas mãos de quem as contratou; em situações de violência psicológica (ansiedade, pressões de vários lados, dissociação entre o corpo e os sentimentos, violência pós-traumática…).

Tudo isto tem necessariamente impacto nas próprias crianças, especialmente as meninas. “Ao contrário da adoção, onde a avaliação parental é reconhecida como uma medida essencial de proteção à criança, pouquíssimas verificações de antecedentes, ou nenhuma, são realizadas sobre os pais que contratam a criança”, salienta Reem Alsalem, a autora do documento. “Pelo contrário –  faz notar – o principal requisito imposto aos futuros pais é a capacidade financeira para pagar uma quantia substancial pelo procedimento de barriga de aluguer”.

Os riscos específicos para crianças nascidas dessa forma são óbvios: “exploração sexual de meninas, visto que há relatos de agressores sexuais que arranjam crianças para barriga de aluguer; o risco de se tornarem vítimas de tráfico de pessoas; e o risco de abandono, especialmente quando a criança nasce com alguma deficiência”, entre outros.

Enquanto não se dão passos decisivos para a erradicação das barrigas de aluguer, com as situações de exploração e violência e de tráfico que lhe estão associadas, a relatora especial da ONU propõe cerca de duas dezenas de medidas, de que se destacam:  aprovar um instrumento internacional juridicamente vinculativo que proíba todas as formas de reprodução sub-rogada, sancionando os compradores, as clínicas e as agências e encontrando saídas alternativas para as mães de aluguer; garantir que o superior interesse da criança seja a principal consideração em todas as decisões relacionadas com a paternidade e os cuidados; exigir que qualquer transferência de direitos parentais da mãe de aluguer seja apenas realizada por meio de processos de adoção judicial que incluam um exame de adequação parental equivalente ao dos procedimentos normais de adoção.

 

Papa Francisco e “Declaração de Casablanca” contra maternidade sub-rogada

As conclusões deste relatório convergem com as reflexões e propostas de um conjunto de personalidades que vinham a trabalhar desde há algum tempo sobre as barrigas de aluguer e que tinham subscrito em 2023 o que ficou conhecido como Declaração de Casablanca. Formado por peritos e profissionais de diferentes áreas e especialidades, e por feministas e políticos de diversas proveniências, os autores da Declaração de Casablanca realizaram em Roma, em junho de 2024, um encontro em que defenderam a ilegalização das barrigas de aluguer – e no qual participou a relatora geral da ONU autora do documento aqui apresentado.

Para eles, a abolição das barrigas de aluguer é uma questão de dignidade humana e de respeito pelos direitos humanos e, desde logo, os direitos das próprias crianças. Por isso, trabalham para “comprometer os estados a adotar medidas contra a maternidade subrogada em todas as suas formas e modalidades, remuneradas ou não”.

Também o Papa Francisco, em discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, em 8 de janeiro de 2024, afirmou sobre esta matéria:

“Considero deplorável a prática da maternidade subrogada, que ofende seriamente a dignidade das mulheres e da criança; e se baseia na exploração da necessidade material da mãe. Uma criança é sempre um presente e nunca é o objetivo de um contrato. Portanto, chamo a comunidade internacional a que se comprometa a proibir universalmente esta prática.”




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