Páginas

sexta-feira, 14 de março de 2025

Se não aprendermos a dialogar pela religião, acabaremos a guerrear por esta

$$post_title$$

Mafra Dialogues 2025

 | 13/03/2025


Falar de paz implica falar de religiões, e implica que essas religiões falem entre si. Dúvidas houvesse quanto a esta premissa e teriam ficado desfeitas após o painel dedicado ao “Diálogo Inter-religioso” que nesta quinta-feira, 13 de março, encerrou a quinta edição dos Mafra Dialogues.

A iniciativa, que o Instituto para a Promoção da América Latina e das Caraíbas (IPDAL) organiza todos os anos no Real Edifício de Mafra, em parceria com o Centro Internacional de Diálogo – KAICIID e a Câmara Municipal de Mafra, tem como grande objetivo “formular e partilhar recomendações estratégicas para a prevenção de conflitos”. E é significativo que tenha terminado com representantes de diferentes comunidades religiosas em todo o mundo a apontar o Papa Francisco como exemplo a seguir na promoção desse diálogo, precisamente no dia em que se completavam 12 anos do seu pontificado.

Um desses representantes foi Marwan Gill, atual presidente da Comunidade Muçulmana Ahmadia na Argentina. O imã – que nasceu na Alemanha, estudou no Reino Unido e vive em Buenos Aires – recordou o primeiro de três encontros que teve com Francisco no Vaticano, em 2022, e as dúvidas que o assaltavam sobre como iria correr. “Pensei que fôssemos falar de teologia mas, quando entrei, a primeira pergunta que ele me fez foi: ‘Como te sentes na Argentina?’. Eu respondi. Depois, durante os quinze minutos seguintes (que era o tempo previsto para a audiência) fez mais perguntas sobre mim, sobre a minha vida pessoal, a minha origem… Foi então que entrou o seu secretário, para o avisar de que o tempo havia terminado, e ele disse: ‘Não, não, agora vamos continuar e falar sobre o resto!'”, contou o representante da Comunidade Muçulmana Ahmadia. Para logo a seguir concluir: “Aprendi muito com o Santo Padre sobre como construir o diálogo. Primeiro, é preciso conhecer o outro, construir essa relação, essa ligação e confiança, e uma vez que tenhamos essa ‘zona segura’, podemos tocar em temas mais sensíveis como a teologia, as doutrinas, as convicções”.

Imã Marwann Gill e o secretário-geral interino do KAICIID, António secretário-geral interino do KAICIID, durante os V Mafra Dialogues. Foto KAICIID

O imã Marwann Gill e o secretário-geral interino do KAICIID, António de Almeida Ribeiro, durante os V Mafra Dialogues. Foto © KAICIID

Lamentando que esta “cultura do diálogo nem sempre seja estimulada nas nossas sociedades”, Khalid Jamal, membro da Comunidade Islâmica de Lisboa e também ele interveniente no painel dedicado ao diálogo inter-religioso, assinalou que “não raras vezes estamos mais preocupados em ter razão, em impor a nossa verdade, e não estamos a escutar verdadeiramente, ou seja, não estamos preocupados em sair da nossa redoma e ir ao encontro daquilo que é a verdade, a visão, a perceção do próximo”.

E partilhou alguns daqueles que considera serem os ingredientes-chave para que a “receita” do diálogo inter-religioso não resulte insossa: assumir a nossa identidade sem medo, utilizar linguagem acessível, ter presente que o objetivo do diálogo é o próprio diálogo e não um consenso absoluto, e reconhecer e interessar-se verdadeiramente pelos melhores argumentos do outro.

Defendendo que “a clareza é compatível com a delicadeza”, Khalid Jamal também recordou o exemplo do Papa Francisco e “uma expressão que ele usa que é bastante simbólica neste contexto: uma pedra, se for bem lapidada e bem usada, deslumbra; mas se for atirada com força à cara de alguém pode ferir e magoar”.

Nascido em Portugal, no seio de famílias de origem indiana e árabe, o representante da Comunidade Islâmica de Lisboa manifestou, assim, não ter quaisquer dúvidas de que “se não aprendermos a dialogar pela religião, acabaremos inevitavelmente a guerrear por esta”. E reconheceu que a voz dos líderes religiosos é muito importante nesse diálogo. “A construção da paz na perspectiva e na visão das religiões sai mais enfraquecida quando não há líderes que possam ser os protagonistas desse diálogo”, afirmou em declarações ao 7MARGENS, no final do encontro.

Porque não se ouvem mais vozes?

Khalid Jamal fala durante o painel sobre o diálogo inter-religioso, durante a quinta edição dos Mafra Dialogues. Foto Câmara Municipal de Mafra

Khalid Jamal fala durante o painel sobre o diálogo inter-religioso, durante a quinta edição dos Mafra Dialogues. Imagem reproduzida a partir da transmissão em vídeo

Khalid Jamal diz estar “absolutamente convicto de que os líderes religiosos deveriam ter um lugar mais cimeiro e mais central na promoção dessa paz”. Mas reconhece que existem dois obstáculos a que isso aconteça. “Em primeiro lugar, como sabemos, a religião, no Ocidente em particular, passou para um plano distinto da governação e isso enfraqueceu as comunidades religiosas e necessariamente os líderes religiosos, o que faz com que estes não tenham a centralidade que nós, enquanto crentes, e todos, enquanto sociedade, deveríamos reconhecer-lhes”, assinala. Além disso, “o islão sunita e o judaísmo caracterizam-se por não ter uma Santa Sé e um Papa à semelhança daquilo que acontece no catolicismo, o que , acaba por fazer com que o mundo islâmico e judaico não sejam tão homogéneos como o mundo católico e não falem numa só voz”, acrescenta.

Voz essa que faz falta, em particular, no Médio Oriente. “Num mundo repleto de desafios, onde existe um conflito latente, que não é novo, mas que agora assume uma diferente relevância, uma dimensão maior, acaba por ser mais visível que há uma ausência de líderes religiosos na zona que possam ser os protagonistas da paz que Gaza tão bem merece e precisa”, destaca Khalid Jamal.

Elías Szczytnicki, secretário-geral da organização Religions for Peace [Religiões pela Paz] para a região da América Latina e Caraíbas, concorda. Natural da Argentina e a viver no Perú, é judeu e tem dedicado a sua vida à promoção de relações inter-religiosas. “É claro que as vozes dos líderes religiosos fazem falta. E há vários, em todo o mundo, que falam e lutam pela paz, mas as suas palavras têm menos difusão que as do Papa”, assinala. É o caso do Dalai Lama, que apesar de ser conhecido, valorizado e respeitado no Ocidente “vê a sua influência limitada devido às tensões com a China”, ou dos líderes religiosos do Japão, que “têm uma mensagem muito forte contra o uso de armas nucleares”, ou mesmo dos representantes do Conselho Mundial de Igrejas, exemplifica.

O facto de a voz do Papa chegar mais longe pode ser explicado, em parte, pelo facto de ele ser, não apenas um líder religioso, mas também um líder político, o que “dá à sua voz e à voz da Igreja Católica um lugar especial nas relações internacionais”, explica o terceiro interveniente no painel.

Para Elías Szczytnicki, é também importante perceber que, no caso dos judeus, “não se trata apenas de uma religião, mas de um povo”. Por isso, “as vozes dos líderes religiosos judeus não só estão vinculadas à defesa da paz universal, mas também à própria sobrevivência do povo judeu, que tem sido muitas vezes ameaçada ao longo da História”, refere ao 7MARGENS.

Elías Szczytnicki fala durante o painel sobre o diálogo inter-religioso, durante a quinta edição dos Mafra Dialogues. Foto Câmara Municipal de Mafra

“As vozes dos líderes religiosos judeus não só estão vinculadas à defesa da paz universal, mas também à própria sobrevivência do povo judeu”, assinalou Elías Szczytnicki. Imagem reproduzida a partir da transmissão em vídeo

Por outro lado, “também temos de reconhecer que já líderes religiosos que estão muito alinhados com a política do Governo dos seus países, e que não é uma política de paz”, alertoa o representante judaico. “É o caso do Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, mas também de líderes de outras denominações na Rússia, e isso limita – como é óbvio – os apelos à paz que são tão necessários”.

Reiterando o compromisso da Religions for Peace em avançar e liderar iniciativas inter-religiosas, Elías Szczytnicki adiantou ao 7MARGENS que a organização irá promover, no próximo mês de julho, a terceira Tokyo Peace Roundtable (em português, Mesa Redonda da Paz de Tóquio), que “reunirá líderes religiosos de zonas de conflito” para ajudá-los a promover aquilo a que organização chama de “diálogo de segunda linha”. “Trata-se de um diálogo, digamos assim, não oficial, mas que pode ser um contributo importante para a ‘primeira linha'”, explicou.

Seja a que nível for, “o diálogo é sempre essencial, particularmente num mundo com tantos conflitos e tantas divisões”, reforça o imã Marwan Gill. “E também é importante manter a coerência entre o que se diz e o que se faz… e nisso o Papa Francisco tem sido também um excelente exemplo”, conclui.

(Imagem de destaque: Os participantes da quinta edição dos Mafra Dialogues assistem ao último painel, dedicado ao diálogo inter-religioso. Foto © Câmara Municipal de Mafra)



Sem comentários:

Enviar um comentário