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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Para-choques

Era uma noite de temporal. A chuva, batida pelo vento, caía há várias horas sem cessar.
Perto da meia-noite, o casal idoso preparava- se para se deitar, quando, inesperadamente, a campainha da rua se fez ouvir. Pelo intercomunicador, uma voz sumida, a voz da neta Matilde, pedia para lhe abrirem a porta. Quando entrou em casa dos avós, Matilde vinha encharcada, com uma pequena mochila às costas. Às primeiras perguntas, debulhou- se em lágrimas. A avó de imediato, lhe disse que tirasse aquela roupa toda molhada para não adoecer… foi buscar uma toalha, uma camisa de noite, umas meias de lã, e recomendou -lhe que tomasse um banho bem quente, enquanto lhe preparava um leite com chocolate e umas torradas…depois já falariam…

Alguma coisa de grave se teria passado… Na manhã daquela sexta- feira, tinham falado ao telefone com a neta e seus pais, para lhe darem os parabéns, pois era o seu dia de anos, e na altura tudo parecia estar bem… os avós não iriam lá jantar nessa noite, como de costume, porque estavam ambos constipados e o tempo estava péssimo… mas iriam no domingo seguinte. A neta parecia alegre e os pais também!

Que teria acontecido??? Por que razão lhes batia à porta aquela hora inusitada, num estado tão lastimoso?

Logo que apareceu na cozinha, a avó pegou no secador e foi-lhe secando o cabelo, enquanto Matilde bebia o chocolate quente e comia, sem dizer palavra…

Por fim, avós e neta sentaram-se na sala e, embrulhada numa manta, Matilde, entre lágrimas, contou aos avós o sucedido:
-‘… os meus pais não sabem que eu estou aqui… tive um dia de anos normal… fui ao cinema com amigas esta tarde, depois lanchámos juntas, e no regresso a casa, para o jantar familiar, estava feliz, eles também, e resolvi falar aos pais numa coisa que guardava há muito, sem coragem para lhes dizer… mas eu não esperava aquela reação… para eles foi uma autêntica bomba… minha mãe chorou imenso e meu pai perdeu a cabeça… interrompeu logo o jantar, levantou-se, deu dois murros na mesa e zangou-se tanto, tanto, que saí de casa só com a minha mochila e não penso voltar…’ e dizendo isto, de novo Matilde se desfez em lágrimas.
-‘Mas que lhes disseste, minha querida? Tu sabes que podes sempre contar com os avós… estamos cá para ajudar… sempre! Aconteça o que acontecer, mas… estás à espera de algum bebé?’
-‘Não, avó! Que ideia! Eu nem tenho namorado… Disse-lhes só que quero desistir do curso de Gestão, voltar ao 12º ano e tirar enfermagem para partir para África e ajudar quem mais precisa de mim… os avós sabem que fiquei muito tocada pelo voluntariado em S. Tomé, no verão passado, percebi onde posso fazer falta mesmo… e ser gestora de uma grande empresa como a que o pai fundou e gere, não me diz nada… gerir hotéis? Turismo? fazer dinheiro? Faturar? Eu? Isso não é vida para mim… Na verdade, só fui para o curso de Gestão e completei este terceiro ano para fazer a vontade aos meus pais… mas sem gosto… só para não os decepcionar… sei que tenho sido boa aluna e os pais estavam contentes com as minhas notas… mas a vida é minha e acho que chegou a hora de decidir pela minha cabeça… não podia adiar mais esta conversa, precisava de lhes dizer isto…’
Os avós ficaram por momentos em silêncio, sem palavras…compreendiam bem os dois lados… as posições antagónicas!

Matilde desde as nove da noite que andara à chuva, a vaguear pelas ruas, sem saber o que fazer, ou para onde ir… desligara o telemóvel e caminhava sem sentido, chorando, desalmadamente. As ruas estavam desertas… aqui e ali apenas algum pobre, enrolado em plásticos, estendido no chão perto da entrada dos prédios, ou um gato abandonado e escondido entre caixotes do lixo. Ao fim de várias horas de caminhada, deu conta de que, inconscientemente, fora ter a casa dos avós, pais do pai, quase no outro extremo da cidade. E pediu-lhes abrigo!

Então o avô, com Matilde encostada ao seu ombro, limpando-lhe as lágrimas, disse- lhe:
-‘Ficarás aqui todo o tempo que quiseres! Falaremos com os teus pais… seremos o teu para-choques, querida, mas é importante que compreendas a atitude do pai… pode parecer-te exagerada e foi, por certo, mas tudo se explica e tudo tem conserto… menos a morte…’
E a avó, pegando na mão de Matilde e fazendo-lhe festas, acrescentou:
-‘Tu sabes bem, minha querida, como a morte inesperada do teu irmão mais velho naquele acidente de moto os afetou… eras muito pequena, mas era ele quem tomaria conta da empresa que teu pai construiu com tanto sacrifício, trabalho e dedicação… para vocês, para assegurar o vosso futuro… depois, a tua irmã do meio, sempre ‘pra frentex’ e toda hippie, com aquela ideia de se apaixonar aos 18 anos por um músico estrangeiro e deixar o país, também foi um grande choque… restavas tu, bem comportada e tão boa filha… em ti os teus pais têm posto todas as suas esperanças e sonhos… é compreensível que a primeira reação seja muito negativa, minha querida…’

A conversa prolongou-se num extravasar de emoções, intercalado de silêncios e soluços, o cansaço dos três era visível… e finalmente, pelas três da manhã, resolveram deitar-se! No dia seguinte voltariam a falar…porém, antes de se deitarem, os avós mandaram uma mensagem ao filho e nora, dizendo que Matilde estava em casa deles, para os tranquilizar, calculando a sua preocupação...

Passaram-se vários dias e semanas, Matilde não saía de casa, estava triste, não queria falar com os pais, nem ir às aulas, apesar de a Faculdade já ter começado; houve conversas dos avós com ela, e outras com os pais de Matilde, a sós, e a situação não parecia fácil… mas um dia, quando a avó se levantava, encontrou Matilde, com uma expressão mais animada, já pronta para sair, dizendo que tinha pensado melhor e ia voltar às aulas, nesse mesmo dia! Os avós ficaram espantados, mas muito contentes com a sua decisão e logo lhe mostraram a sua aprovação.

Nessa noite, o avô anunciou: -‘Os teus pais vêm cá jantar, amanhã, Matilde, e querem falar contigo e connosco! Creio que vai ser bom ouvi- los e parece que têm uma proposta a fazer-te… nós estamos contigo, apoiamos-te nas tuas decisões e ficas aqui o tempo que quiseres!’

Matilde e os pais não tinham voltado a falar-se… quando se encontraram, ao fim de tantas semanas de separação, abraçaram-se demorada e espontaneamente, como que movidos por uma única e mesma força de atração impossível de conter… Matilde sentou-se, em seguida, de mão dada com a mãe.
Então o pai, aproximou uma cadeira, sentou-se em frente da filha e com voz embargada, começou a falar-lhe: -‘Matilde, a mãe e eu queremos dizer-te que a única coisa que desejamos é a tua felicidade e a paz entre todos! Só isso queremos! Só isso importa! Já chega de sofrimento na nossa família… Temos pensado muito… e devo reconhecer que talvez o orgulho pela obra feita me tenha cegado… tu sabes como eu tenho vivido toda a vida demasiado centrado na empresa que fiz e levantei do nada e que hoje continua a florescer e tem mais três hotéis em fase de crescimento! Esta empresa é quase como um filho! Quando nos falaste nos teus planos pessoais, tão diferentes do que sonhávamos para ti, acreditando que seria a tua melhor herança, foi como se tudo desabasse… mas depois de várias conversas com os teus avós e alguns amigos, temos pensado muito e queremos pedir-te duas coisas: por favor, volta para casa e termina o teu curso de Gestão! Não queremos contrariar os teus planos, e acreditamos que juntos podemos apoiar os teus sonhos e talvez possas ir mais longe! Por um acaso, ou talvez não, encontrámos lá em casa a história de vida do Prémio Nobel Albert Schweitzer, médico, teólogo e organista, de quem já nos tinhas falado várias vezes, lembras- te?
Ao lermos a vida dele, compreendemos como foi inspiradora para ti… e agora também para tua mãe e para mim. Ele ganhava o que queria na Alemanha, era rico e famoso, mas desejava mais… como tu, queria ajudar os mais necessitados e por isso fundou a primeira leprosaria em Lambaréné, no Gabão, onde não havia nada de nada… e de cada vez que se lhe acabava o dinheiro, voltava à Alemanha para dar concertos e conferências e buscar recursos…
Matilde, tu também, com um curso de Gestão e o apoio da nossa empresa, poderás ter mais recursos para construir uma Escola de Enfermagem em África e cumprir melhor o teu sonho de ser útil e ajudar quem mais precisa. Com tempo, mais tarde, poderás mesmo construir um dispensário, ou talvez um pequeno hospital, e oferecer cuidados de saúde às populações… e tu própria, aprenderás enfermagem, se quiseres, mas entretanto, aprendes a gerir recursos e equipas de pessoas e informas-te sobre o país e local onde mais importa trabalhar. Os hotéis da nossa empresa serão os teus financiadores… que te parece, Matilde?’

Matilde nem queria acreditar no que estava a ouvir… olhava-os com surpresa e felicidade… os avós sorriam, radiantes, ao verem a expressão do rosto de pais e filha…

Finalmente, a paz voltava àquela família… Nessa noite, depois do jantar, Matilde voltou para casa com os pais. Ao despedir-se, deu um grande abraço aos avós, e beijando-os, disse apenas: ’queridos avós, meus queridos para-choques, obrigada! Obrigada…!’








Fátima Fonseca

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