Tenho uma imagem gravada a fogo na memória. Tinha lá meus oito a
nove anos e brincava no alto da escada da casa de meus avós maternos. Montara
um guindaste manual com as peças de um brinquedo, chamado Mecbrás, que tem a
idade destas lembranças. Era constituído por um conjunto de peças - como rodas,
roldanas, pequenas placas, parafusos, porcas e outros componentes mecânicos,- e
permitia montar várias coisas. Algumas das montagens possíveis e mais elegantes
eram sugeridas na caixa do brinquedo. Outras, ainda que menos belas, brotavam
da imaginação de cada um. O cabo do guindaste que montei era um barbante
delgado, esticado por um pequenino contrapeso de ferro fundido.
Depois de liberar o cabo até o chão, prendia alguma coisa para que
pudesse içá-la. Tornava a subir a escada e então trazia até mim o que
supostamente resgatava de um vale profundo. Passados tantos anos, sou eu que me
encontro no vale, o vale da maturidade, cercado pela serrania do próprio tempo,
lutando de quando em vez para escalar cimos e enxergar mais longe.
Era uma tarde qualquer na vida de um menino que estudava pela
manhã no Ginásio São João Batista e depois de feitas as lições de casa tinha
seus momentos de folguedo. Lembro-me sem a sombra de qualquer dúvida que naquela
tarde tive a convicção de que desejava ser engenheiro. Quis o tempo e a sorte
que alcançasse a meta, sobretudo porque até então papagueava que desejava ser
Embaixador. Vejam só, ainda que então não fizesse ideia concreta do papel de um
representante diplomático, enfiara na cabeça que viajaria pelo mundo. Para
sorte da diplomacia brasileira, deixei o sonho pelo caminho, como faz um
pássaro pequeno que não conseguiria voar com o peso do galho que se metera a
transportar. Não se alivia o peso de um avião apenas para impedir que caia, portanto,
mas também para que possa decolar.
Vivíamos naquele tempo as grandes aventuras espaciais, o que
deixava nossa cabeça um pouco além das nuvens. Quando Gagarin, em órbita,
deslumbrou-se com a Terra azul, eu tinha quatro anos. Quando Neil Armstrong pôs
seu pé na Lua, tinha doze. E todos nós, os meninos de então, já éramos lunáticos
havia um bom tempo. Não havia como não sonhar mais alto e era comum escutar alguma criança-austronauta fazendo de
conta que chamava a Terra pelo rádio.
Apesar de já andarmos no lombo do veloz cavalo da tecnologia de
então, um puro sangue, como hoje se vê pelos avanços galopantes nas últimas
décadas, ainda restava na alma algo maior. Nossa formação humanística e nossas
práticas fraternas, estimuladas pelas escolas confessionais, preservavam o
perfume de humanidade em nosso meio, em nossas famílias. Era um tempo em que os
jovens sonhavam em fazer algo pela comunidade, pelo mundo. Universitários se
engajavam no Projeto Rondon, por exemplo, e muitos deles sonhavam, ainda que
secretamente, em por os pés na miséria da África para ajudar os outros de
alguma forma.
Qual era a grande diferença da década de 60 para os dias que
correm? Foi de um sábio Padre que escutei a resposta, quando lembrou que os
homens precisam de ideais. Nos anos 60 o idealismo respirava e os jovens cumpriam
seu papel natural de inconformismo. Protestavam contra hipocrisias
estabelecidas, contra a ditadura, contra o holocausto no Vietnã, ainda que
muitos deles tenham trocado os pés pelas mãos ao mergulharem no oceano das
drogas.
Meio século atrás quase todos tinham preocupações humanitárias de
superior grandeza e os ególatras estavam longe de serem maioria. Também era, é
verdade, uma época turbilhonada por ideologias, cujas consequências e fracassos
encheram páginas e páginas da História. A despeito disto, ainda se enxergavam
dignos mesmo os homens que não tivessem um tostão no bolso.
Alguém já disse, com boa dose de ceticismo, que a natureza é bruta
e que só os homens insistem em vê-la de forma mais generosa. O que dizer? Resta
perguntar como anda, agora, o idealismo. Basta olharmos em nossa volta. Quantos
idealistas você enxerga no seu entorno? Quantos jovens você conhece que se
dispõem a ultrapassar as fronteiras de si mesmos para dar às suas existências
um valor mais alto? Se você pervaga a memória, volta a insistir nesta busca por
idealistas e sua desapontada resposta é o silêncio, isto por si só já dá o tom
de nossa realidade empobrecida, a cabresto de interesses pequeninos. Como o
enriquecer de qualquer forma. Ou o exibir-se a todo custo.
J. B. Teixeira |
Sem comentários:
Enviar um comentário