Apesar de ser geralmente identificado como um conjunto de
eventos de música “clássica”, o programa do Festival Terras sem Sombra
tem um âmbito bastante mais alargado, dialogando com outras tradições
musicais e apostando na descentralização cultural, na criação de novos
públicos, na salvaguarda da biodiversidade (em colaboração com o ICNF) e
no conhecimento da paisagem – e dando a conhecer, sem distinções, as
grandes páginas da música e a criação dos nossos dias, o património
construído, a herança natural e o infinito horizonte dos campos
alentejanos.
Como pano de fundo, este projecto, realizado em parceria com os
municípios, as empresas e as famílias, não se furta a promover,
nomeadamente junto do meio artístico, o desenvolvimento local:
aproveitando a presença, no Baixo Alentejo, de músicos e outros opinion makers, dá a
conhecer, de forma estratégica, o que há de melhor (e mais interessante)
na região. A começar, claro está, pelos seus produtos de excelência. Um
deles passa, todos os anos, pelo crivo do Festival; e, após avaliação
rigorosa, é alvo de especial atenção.
Depois do café, do azeite, do leite de burra (indispensável na indústria
cosmética, sai do Alentejo, liofilizado, directamente para o Japão e a
Coreia do Sul) ou do mel, chegou a vez do vinho, com realce para a
perfumada casta Antão Vaz, cujas origens, ainda envoltas em mistério,
andam ligadas, desde a época romana, ao Baixo Alentejo, terroir de alguns dos
melhores vinhos nacionais. O label
outorgado pelos avaliadores do Terras sem Sombra é já, em
Madrid, Lyon ou Roma, uma referência que concita interesse.
Mas Juan Ángel Vela del Campo, o director artístico do Festival, uma
figura conhecida no mundo da cultura, quis ir mais longe e tornou-se um
embaixador dos sabores do Alentejo, não fosse ele um dos membros da
reputadíssima – e exigentíssima – Real Academia de Gastronomia, de Madrid.
Do seu diálogo constante com a equipa do Terras sem Sombra, lembrando a
velha aliança entre boa música e boa comida (que não é senão uma maneira
de celebrar a cultura de cada povo e de cada região), surgiu de ideia de
associar a cada edição da iniciativa um chef de reputação internacional,
convidando-o a tomar contacto com os produtos de referência da terra
alentejana.
Na senda de outros visitantes ilustres, esta semana desembarca no Baixo
Alentejo um mito da gastronomia tradicional do Sul da Europa: Cecilio
Lera, o afável cozinheiro-autarca de Castroverde de Campos, município
histórico da província de Zamora, em cujo estabelecimento, uma casa fiel
à tradição de Castela e Leão, é, sobretudo na época da caça, tão ou mais
difícil reservar mesa do que no estabelecimento de Ferran Adrià. Como a
Castroverde espanhola está geminada com a Castro Verde portuguesa, foi
este o concelho escolhido pelo Festival para receber o ilustre visitante,
numa parceria com a Câmara e as forças vivas da localidade.
D. Cecilio é dono do restaurante Mesón El Labrador, um epicentro da
“comarca” de Tierra de Campos, mas é também viticultor, caçador,
apaixonado por burros, cavalos e cães, poeta e político – é o mais antigo
presidente da Câmara de Espanha. Há mais de 30 anos que exerce funções,
no seu concelho, de forma ininterrupta e com maioria absoluta.
Homem de vistas largas, desde os tempos que estudava fora da sua pequena
vila (formou-se na mais prestigiada escola de restauração de Lausanne) e
convivia com os exilados do Franquismo, trouxe o espírito de abertura ao
mundo para o espaço ao redor dos fogões. Na Suíça, em Itália e em
Espanha, bebeu os protocolos da alta cozinha e disputou estrelas
Michelin. Porém, o apelo das raízes falou mais forte e levou-o a
regressar, em 1973, à Tierra de Campos. Fundou em Castroverde, com a
mulher, Minica Collantes, na vanguarda, um dos “santuários de
peregrinação” da gastronomia peninsular, como tem sido classificado pela
crítica mundial da especialidade.
Pelo restaurante de Lera, passam, ano após ano, muitas figuras de todos
os quadrantes, incluindo os políticos europeus, os quais são recebidos da
mesma forma, chã e cordial, que o mais anónimo dos cidadãos. Como mestre
da gastronomia zamorana, Cecilio Lera privilegia os produtos da sua região
e, especialmente, da sua terra, valorizando-os com escrupuloso respeito
pelos saberes da tradição e pelas diferentes épocas do ano, mas não deixa
de assumir o risco da inovação, quando isso se torna necessário.
No Alentejo, o desafio que o Terras sem Sombra lhe colocou é o de, em
breves dias, conhecer e experimentar as primícias do Campo Branco,
ajudando a pensar, estrategicamente, um futuro para produtos que são,
também eles, garante da salvaguarda da biodiversidade. O desenvolvimento
regional faz-se, por vezes, com pequenos/grandes gestos, estabelecendo
pontes.
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