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domingo, 6 de março de 2016

Monsenhor Khazen: “Chega de impor interesses estrangeiros à Síria”

O vigário apostólico de Aleppo dos Latinos explica os efeitos positivos da trégua, mas lamenta a conivência estrangeira com o Estado Islâmico e pede que “se deixe o povo sírio decidir por si”


Aleppo - Flickr

Estava programada para esta semana uma visita à Itália de dom Georges Abou Khazen, o vigário apostólico de Aleppo dos Latinos. O bispo participaria de uma celebração de quaresma e de uma série de conferências para relatar o drama vivido pelo povo da Síria, especialmente pelas minorias religiosas como os cristãos.

No entanto, esse mesmo drama forçou dom Abou Khazen a cancelar a viagem à Itália. Por telefone, ele anunciou que “Aleppo não tem vias percorríveis ​​neste momento” e que “a única estrada que liga a cidade ao sul do país foi liberada pelo exército regular, mas as outras ainda estão sob o controle das milícias armadas”. Dom Abou Khazen também explicou que Aleppo está impedida de receber suprimentos e ajuda humanitária.

ZENIT entrou em contacto com ele para saber como a situação está se desenrolando e quais são as esperanças do povo sírio quanto às negociações de paz a ser retomadas no dia 9 de Março, em Genebra.

ZENIT: Excelência, o que está acontecendo em Aleppo neste momento?
Neste momento, em Aleppo, a situação está menos difícil e menos grave do que alguns dias atrás. O exército regular conseguiu romper o cerco e liberar a única estrada que liga Aleppo às outras partes da Síria, que o Estado Islâmico e a Frente Nusra tinham ocupado parcialmente. Agora os suprimentos, comida, combustível etc. estão chegando à cidade. Mas ainda estamos há seis meses sem energia eléctrica e há cerca de dois meses sem água. Nos últimos dias, os bombardeamentos de bairros civis diminuíram significativamente.

ZENIT: Então a trégua começada no sábado passado está tendo efeitos positivos?
A trégua está tendo efeitos muito positivos: ela parou os rios de sangue e está evitando mais mortes, destruição e muita dor e sofrimento. Ela está incentivando também o processo de reconciliação entre os sírios em várias partes da Síria, além de dar impulso às negociações planeadas. Esta trégua está permitindo que a ajuda humanitária chegue às áreas sitiadas. Só esperamos que o cessar-fogo dure.

ZENIT: Sua Excelência acredita, como disse recentemente o presidente Bashar al-Assad, que a catástrofe humanitária na Síria se deve não só à guerra, mas também ao embargo imposto pelos países ocidentais?
Nós dissemos desde o início que o embargo imposto pelos países ocidentais é um crime! Esse método não ajuda nunca. Como sempre, quem sofre e paga as consequências é só o povo. Todo o povo, mas especialmente os mais pobres e vulneráveis: nós mendigamos para ajudar as pessoas, que passam fome, enquanto, por causa do embargo, centenas de milhares de sírios que trabalham no estrangeiro não podem transferir um centavo para as suas famílias na Síria. Milhares de estudantes sírios que se especializam no exterior têm que interromper seus estudos porque as famílias não podem enviar o dinheiro, nem o governo pode pagar as bolsas de estudos para muitos deles. As pessoas passam frio; no inverno, Aleppo tem temperaturas abaixo de zero, sem poderem ter nem diesel nem gás para o aquecimento. Para não falar da falta de medicamentos, máquinas necessárias para hospitais, peças de substituição etc… Eu quero saber: depois de ter causado essas catástrofes, o embargo conseguiu trazer a paz e resolver o conflito?

ZENIT: Mudou alguma coisa nos últimos cinco meses, desde o início da intervenção russa?
Nos últimos cinco meses, desde o início da intervenção russa, muitas coisas mudaram. Nos 18 meses de intervenção da chamada coligação internacional contra o Estado Islâmico (liderada pelos EUA e seus aliados, ndr), os terroristas tinham ocupado 50% dos territórios não controlados pelo governo. Nestes últimos cinco meses de intervenção russa, o EI perdeu 20% do território que ocupava, e os outros grupos jihadistas, como a Frente Nusra, também perdem posições. O exército regular pôde avançar e libertar muitas vilas e cidadezinhas, permitindo o regresso dos refugiados. Além de tudo isso, foi possível reabrir as escolas nesses lugares e levar as crianças de volta para as salas de aula depois de alguns anos de abandono. E eu quero recordar que temos de reconhecer à Rússia o especial empenho nas negociações e na trégua.

ZENIT: Em ocasiões anteriores, Sua Excelência falou da guerra na Síria como uma “guerra por procuração”. Que países estariam envolvidos? E com que finalidade?
O meu julgamento não foi temerário. Os factos provam esta afirmação e todos os meios de comunicação já confirmam isso. Os próprios países envolvidos confessam, começando pelos Estados Unidos e passando por uma série de países europeus, pela Turquia, pela Arábia Saudita, pelo Catar…

ZENIT: A quais fatos Sua Excelência se refere?
O que eu digo pode ser facilmente deduzido da análise de alguns aspectos dessa guerra: como é que foi possível que dezenas de milhares de combatentes estrangeiros conseguissem atravessar as fronteiras até chegar na Síria? Quem os armou e treinou? Como eu disse, durante a intervenção da assim chamada coligação internacional contra o EI, liderada pelos EUA, o EI ocupou 50% da Síria! A metade do território! E eu acrescento: quem é que está comprando o petróleo do EI, a custos baixíssimos? Quem está comprando os tesouros arqueológicos roubados pelo EI no Iraque e na Síria? Os únicos que combatem o EI em campo são os curdos e o exército regular sírio. Enquanto isso, a Turquia está bombardeando os curdos e os EUA não querem nem saber do exército regular…

ZENIT: Em 9 de Março, em Genebra, vão ser retomadas as negociações de paz para a Síria. Qual é a sua esperança?
Nós temos uma forte esperança. Esperança de que os sírios finalmente se vejam livres para negociar e decidir por si mesmos, sem a imposição dos interesses de potências regionais estrangeiras. Esta é a condição para que os diálogos sejam fecundos. Os sírios já estão cansados desta guerra absurda, e mais cansados ainda dos muitos combatentes estrangeiros presentes na Síria para criar o caos e impor a sharia.

ZENIT: Sua Excelência acha que os cristãos sírios estão destinados a um futuro distante da sua própria terra?
Infelizmente, muitos cristãos já deixaram a Síria e o Iraque para procurar um futuro em outro lugar, longe da sua terra. Mas outros estão determinados a permanecer apesar de tudo. O nosso futuro está nas mãos do bom Deus, que, no Antigo Testamento, realizou o seu plano de salvação através do pequeno resto que ficou ou voltou do exílio. A Síria é a Antioquia de onde, após Jerusalém, partiu a proclamação da Boa Nova, e onde os discípulos de Jesus foram chamados pela primeira vez de cristãos. E eu não acho que esse nome e esses discípulos vão desaparecer. Vamos continuar a dar testemunho no Oriente. São Paulo se converteu às portas de Damasco e nosso Senhor é capaz de enviar outros Paulos.


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