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quinta-feira, 24 de março de 2016

O amanhã de uma Europa ferida: é preciso vencer o ódio e não apenas condená-lo

Reflexão de um arcebispo italiano sobre os atentados em Bruxelas

  Mundo

Wikimedia Commons / Flickr

A minha primeira reacção à notícia dos massacres em Bruxelas foi a necessidade de orar: rezei pelas vítimas e seus familiares, pela Bélgica e pela Europa ferida no coração, pelos jovens terroristas e pelos seus mestres malignos. Para aqueles que foram tão cruelmente arrancados da vida eu pediu a Deus o abraço do seu amor misericordioso, e, para quem os amava, a força de senti-los ainda próximos em Cristo, unidos numa proximidade mais forte que a morte; para todos nós, europeus, eu pediu a rejeição de toda retórica que enche a boca de palavras, mas deixa vazio o coração e estéril a reflexão: não acho suficiente condenar o que aconteceu e continuar agindo sem uma identidade espiritual comum e uma visão elevada diante do drama a que o nosso presente está nos habituando.

Uma Europa que estigmatize a violência, que declare cega loucura esse ódio que inflama as hordas assassinas do califado, tão distantes do Deus que se atrevem a invocar quanto sedentas de sangue inocente, essa Europa não pode ser a mesma que fecha as portas aos refugiados e tolera – para dar apenas um trágico exemplo – a situação escandalosa de Idoumeni, onde, às portas fechadas da Macedónia, milhares e milhares de pessoas em fuga da destruição e da morte continuam esperando desesperadamente para se unir aos seus entes queridos já estabelecidos nos países do Velho Continente ou para perseguir o sonho de um futuro diferente, digno da pessoa humana.

As soluções que diante deste drama tratam os seres humanos como se fossem dados estatísticos não são dignas de nações que têm na liberdade de todos, na justiça para todos e na democracia a sua bandeira.

Os acontecimentos dramáticos em Bruxelas são mais um sinal de alerta do que não funcionou nem funciona em nossa casa comum europeia: acolhimento e integração não devem ser dissociados; acolher força de trabalho útil para a sua economia e marginalizar os trabalhadores imigrantes não é digno de quem reconhece como fundadores figuras do calibre de Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer e Robert Schuman. É urgente e necessário um exame de consciência sério, profundo e articulado, que parta dos sonhos e esperanças daqueles que, depois da guerra, começaram a trabalhar pela nova Europa.

Rezo também pelos executores dos atentados: é verdade que nada pode justificar o seu ato criminoso, a covardia de se camuflar para machucar, a brutalidade de matar a sangue frio seres humanos que estavam no lugar errado na hora errada.

Mas devemos perguntar-nos como é que jovens nascidos e crescidos em nossa civilização europeia puderam chegar a tal grau de cegueira e de loucura assassina desesperada e lúcida: e aqui, se por um lado ressurge a urgência de refletir sobre a integração fracassada, por outro urge identificar os “malignos mestres” que fizeram da religião uma ideologia de morte, e dos sonhos de jovens um campo minado pelo ódio fundamentalista.

Um apelo se eleva do sangue das vítimas de Bruxelas hoje, como do sangue de todas as outras vítimas assassinadas pela violência terrorista: seja impedido quem semeia o ódio, onde quer que esteja; abra seus olhos e se arrependa aquele que apela ao Deus de todos para invocar ou justificar a violência e a morte, própria e de outros. O paraíso não é para aqueles que blasfemam contra Deus matando em nome de Deus: a fé e a razão não podem opor-se, mas promover juntas a rejeição da violência e o respeito pela dignidade de todo o homem em cada homem.

O papa Bento XVI o recordou no famoso e muito mal compreendido discurso de Ratisbona (Regensburg) em 12 de Setembro de 2006: “Deus não se compraz com o sangue”, tinha declarado ele, citando as disputas medievais do imperador Manuel II Paleólogo: “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Quem quiser conduzir alguém à fé precisa da capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, não da violência e da ameaça… Para convencer uma alma razoável, não é preciso dispor nem do braço, nem de instrumentos para golpear, nem de qualquer outro meio com que se possa ameaçar uma pessoa de morte”. Para esta convicção é necessário que convirja o consenso de todos, muçulmanos e cristãos, e que esta seja a base do respeito convicto de toda pessoa, por parte de crentes e não crentes.

O papa alemão alertava para os riscos que, de outra forma, todos correriam; riscos que hoje vemos tragicamente realizados na insana matança irrompida em Bruxelas, como antes na França e em outros lugares: “O Ocidente, há muito tempo, é ameaçado por esta aversão às questões fundamentais da sua razão e com isto só poderá sofrer um grande dano. A coragem de abrir-se a toda a amplitude da razão, e não a negação da sua grandeza: este é o programa com que uma teologia empenhada entra nos debates do nosso tempo. ‘Não agir segundo a razão, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus’, disse Manuel II, partindo da sua imagem cristã de Deus, ao interlocutor persa. É a este grande logos, a esta vastidão da razão, que convidamos no diálogo das culturas os nossos interlocutores”.

O convite deve, agora mais do que nunca, ser acolhido e relançado com apaixonada convicção, na certeza de que a ninguém será lícito refutá-lo; do contrário, será deixado espaço aos malignos mestres e ao rio de sangue que, das suas palavras, continua fluindo através da loucura lúcida de jovens privados da própria humanidade. Os massacres de Bruxelas me fizeram rezar com ainda maior convicção para que o apelo do papa Bento em Ratisbona seja finalmente compreendido e acolhido por todos.


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