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quinta-feira, 5 de julho de 2018

O tiro pela culatra

Já relatei algures esta historieta, que de tão trivial é verdadeira. Um amigo visitava um casal e suportava a chatice do filho único da casa. Tratava-se de um menino intragável, xarope, no estilo que deseja protagonismo nem que tenha que pôr fogo no rabo do gato. O visitante fazia enorme esforço para se conter. Lá pelas tantas o azougue aprontou acima do limite de tolerância dos pais e levou a pior. O visitante, encorajado enfim pela reviravolta que se impunha naquela casa, aplaudiu o súbito rigor, que no fundo julgava apenas como fruto da enorme desídia dos pais. Qual não foi sua surpresa quando ficou em situação delicada: os pais esqueceram do filho malcriado e passaram a revelar sua indignação quanto à indelicada observação do visitante.

É isto que dá meter-se na vida dos outros, mesmo quando pensamos fazer um bem. Entrar em detalhe sobre educação de filhos e relações íntimas é algo vedado a estranhos e muito perigoso até mesmo para parentes. O melhor a fazer é rezar e mesmo os palpites, aqueles que saltam do peito como balão esvaziando, devem ser dados sob solicitação. E, mesmo assim, olhe lá!

Existem alguns lugares no mundo que se tornaram famosos pelo trânsito caótico. Cidades do Irã e outras tantas na China e na Índia são frequentemente citadas como exemplos de bagunça e permanente apreensão. Pois bem, posso acrescentar o Líbano a esta lista. Por vezes o semáforo fecha e a pista de pedestres se mantem como território de alto risco, porque os carros seguem avançando. Tomei uma van caindo aos pedaços, do aeroporto para a região do Convento Franciscano em que me hospedei. Me recusara a pagar vinte e cinco dólares a um táxi. Depois de muito indagar, de subir e descer as escadas do aeroporto, acabei descobrindo as vans e venci o sindicato: paguei três dólares e desfrutei de uma aventura pelas ruas de Beirute. O sujeito corria demais com aquele cacareco. Aproximava-se perigosamente de outros veículos e recorria à buzina a todo instante. Foi apenas o início.

Nos dias seguintes machuquei as solas dos pés, de tanto andar por uma cidade que se reergue de duas guerras, com velocidade e beleza dignas de nota. Quando fui a Biblos, a Jbeil dos fenícios, estes hábeis comerciantes e navegadores que iniciaram a devastação dos cedros para a construção dos barcos, tomei um ônibus. E vi coisas incríveis. Além  de correr muito, por vezes a condução recolhia passageiros fora de paradas convencionais. Uns e outros passageiros atravessaram filas de carros para adentrar no ônibus.

O que importa na experiência, porém, não é o bizarro ou a narrativa de um viajante, senão o testemunho de que apesar da confusão, do insólito, da correria e da impaciente buzinação, não vi um único acidente em uma semana no Líbano. Em outras palavras, a coisa funciona, ainda que nenhuma de nossas autoridades aprovasse a qualidade de muitas viaturas de transporte público, nem o comportamento de motoristas e passageiros. Mas funciona. Provavelmente um dia mudarão, mas até lá muita neve cairá nos cimos da cadeia conhecida como Monte Líbano.

Estar no Oriente Médio é sempre um desafio ao entendimento. Na vizinha Síria, da qual estive a poucos quilômetros, visitando um campo de refugiados para gravar imagens e entrevistas, a crueldade mundial se mostra com terrível nudez. Não entrarei em detalhes sobre o governo sírio, do qual não tenho procuração e cujas práticas não são muito diferentes das de outros dirigentes da região. Quem criticar o teatro de Assad não pode aplaudir o histrionismo dos príncipes sauditas ou as fantasias de Abdulah, o rei jordaniano. São todos farinha do mesmo armazém. Ou existe governo na região que se possa denominar democrático na mais castiça acepção?

Penso que o melhor que o mundo teria a fazer é seguir a pregação de não intervenção, há décadas defendida pela diplomacia brasileira. Dando aos regimes, sejam quais forem, a paciência dos séculos, se necessário. Nunca gostei da cara impudente de Henrique VIII. Tenho na imaginação que deve ter sido asqueroso. Na Torre de Londres pode-se ver uma de suas armaduras. Baixote e barrigudo, fundou uma igreja para casar com Ana Bolena. Depois a matou. Teve com ela uma filha, Elisabeth, que mataria sua prima, Maria Stuart. À luz do suposto virtuosismo das potências ocidentais, o que teriam feito, à época, com o tal Henrique VIII? Intervir é como assumir uma batida de clara de ovos já iniciada. A coisa normalmente desanda.

J. B. Teixeira



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