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quinta-feira, 19 de julho de 2018

“Karitas habundat in omnia” ou a história da feiticeira Cundrîe


quarta-feira, 18 de julho de 2018


Músicas que falam com Deus (45)

O Palácio de Sintra, sábado à noite

A música começa só com a voz, junta-se depois a flauta e, a seguir, o saltério. É como uma onda que vem, lenta mas firme, até inundar tudo. O poema confirma: Karitas habundat in omnia, o amor inunda o todo, ele ama abundantemente tudo... O texto é de Hildegarda de Bingen, a mística renana do século XII, e é ele que marca o início (e também o final) do belo concerto da alemã Maria Jonas e da sua Ala Aurea na 4ª Temporada de Música da Parques de Sintra.

O ciclo deste ano tem como título Reencontros – Memórias Musicais no Palácio de SintraSábado passado, no cenário renascentista e onírico da Sala dos Cisnes, no Palácio da Vila, o tema do espectáculo tinha por título Cundrîe la Surziere – Um trajecto medieval em busca de Chrétien de Troyes e Wolfram von Eschenbach. A história de Cundrîe, espécie de feiticeira, mensageira do Santo Graal, conta que ela governava as ciências e as línguas do mundo antigo, resumia o programa. Ela era mediadora entre Oriente e ocidente e a sua mensagem era a caridade, mensagem “cristã primeva” que ecoava através dela e da sua voz “meia pagã” no antigo círculo Arturiano cristão.

A recriação proposta por Maria Jonas é singular: a música medieval só sobreviveu em alguns casos excepcionais, explica a artista, “sendo difícil determinar o modo como os textos eram musicados, o papel da improvisação e a articulação destes elementos no espetáculo musical”. A interpretação e a audição da música medieval, acrescenta, “têm sempre qualquer coisa de um ‘aqui e agora’”, diz ainda Maria Jonas, que caracteriza o estilo do seu trabalho como “música medieval livre”. Por isso, nos seus concertos, a improvisação reveste-se por vezes de um tom quase jazzístico, outras dos jograis ou ainda dos liederromânticos.

O concerto de sábado passado foi exemplar, desse ponto de vista: não se limitou ao que poderá ser a interpretação básica da música medieval, seguindo um arquétipo consagrado, antes nos levou a novos territórios. Diga-se que isso tinha tudo a ver com a história que aqui se pode resumir, a partir do programa: Cundrîe, bruxa feia, quase monstro, repreendeu Parzival, dizendo-lhe que ele não era digno da Távola redonda ou do Graal. O programa do concerto, centrado no Parzival, de Wolfram von Eschenbach (século XII-XIII) traduzia as profundas mudanças sociais e culturais da época, entre as quais a nova percepção do conceito de amor cristão (a caritas) e a revalorização do papel das mulheres. Cundrîe (que na origem francesa significa “a enfeitada”) surge como a intermediária entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano, que as Cruzadas tinham mostrado que não se devia menosprezar. E a sua sabedoria, a sua humanidade, a sua empatia e o respeito pelas outras pessoas – a sua vivência da caritas– levam-na a ser reconhecida, apesar da sua fealdade física.

No concerto, deve destacar-se também o extraordinário contributo dos restantes músicos: o iraquiano Bassem Hawar, no djoze, espécie de violino com uma caixa minúscula; a alemã Elisabeth Seitz, no saltério; o italiano Fabio Accurso, no alaúde e flauta, além de autor das peças instrumentais; e também o português Tiago Mota na recitação. Diga-se que qualquer um deles já tocou com outros grandes nomes da música: entre outros, estão nessa lista Ton Koopman, Ricercar Consort, Poème Harmonique ou L’Arpeggiata (que, na véspera, estiveram no mesmo local a dar outro concerto, e do qual foi co-fundadora Elisabeth Seitz, talvez a mais conhecida executante alemã do saltério).

“Entre a humanidade e Deus, estou exactamente a meio, na fronteira”, dizia Cundrîe, a dado passo. Este concerto também nos deixou nesse lugar.

Azulejos no Palácio de Sintra

[O festival continua já na próxima sexta e sábado com dose dupla dos Odhecaton, dirigidos por Paolo da Col. Sexta, dia 20, sobre o tema Flos Florum – Simbologia do número e devoção Mariana na polifonia franco-flamenga (programa aqui); sábado, dia 21, com o título Os humores de Orlando di Lasso (programa aqui).

Dias 27 e 28 será a vez da Accademia del Piacere, com os programas Redescobrindo Espanha – Fantasias, diferencias e glosas na música espanhola dos séculos XVI e XVII (sexta, 27) e Hispalis Splendens – Músicas da Sevilha do Século de Ouro (sábado, 28).

Os concertos realizam-se sempre às 21h30, na Sala dos Cisnes do Palácio da Vila, em Sintra; bilhetes à venda nos locais habituais. Mais informação: www.parquesdesintra.pt, info@parquesdesintra.pt ou tel. 219 237 300.]




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