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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Sínodo e Parlamento

 | 27 Nov 2024

“Num sínodo onde se pretende que seja protagonista o Espírito Santo, pelo contrário, cada um dos participantes partilha ideias e propostas com desapego, pronto a perdê-las, sem posturas reivindicativas, aberto à escuta profunda de outras ideias e propostas.” Foto: Assembleia da República. @IPPAR


Já várias vezes salientou o Papa Francisco que o caminho sinodal que por sua iniciativa vive hoje a Igreja não pode confundir-se com um parlamento. É assim porque o protagonista desse caminho sinodal é o Espírito Santo. Daqui decorrem consequências bem evidentes.

Num parlamento confrontam-se estratégias de poder em lutas de frações. Cada parlamentar defende com firmeza as suas ideias e reivindica o que lhe parece mais justo. As maiorias sobrepõem-se às minorias sem que necessariamente se busquem consensos mais alargados.

Num sínodo onde se pretende que seja protagonista o Espírito Santo, pelo contrário, cada um dos participantes partilha ideias e propostas com desapego, pronto a perdê-las, sem posturas reivindicativas, aberto à escuta profunda de outras ideias e propostas. Dessa partilha podem surgir ideias e propostas diferentes das que cada dos interlocutores expôs inicialmente, outras ideias e propostas que são fruto da luz do Espírito Santo, o protagonista, e que são por todos como tal acolhidas e estimadas. Pressuposto fundamental dessa partilha é o do amor recíproco entre todos os participantes. Buscam-se consensos alargados, que, com estas premissas, se tornam possíveis. Um verdadeiro sínodo não fragmenta mais a Igreja; pelo contrário, reforça a sua unidade.

A propósito, já houve quem dissesse que a Igreja sinodal não é uma democracia, é mais do que uma democracia, é uma comunhão. Neste sentido: a comunhão que na Igreja se deve viver (este é o seu “dever ser”, para o qual devemos caminhar sem cessar) valoriza a participação de cada pessoa como “única e irrepetível” e pode alcançar consensos alargados que não são compromissos mínimos.

É também partindo destes pressupostos que deve entender-se a questão da autoridade na Igreja e da distinção entre funções consultivas e deliberativas. Se a postura é a de desapego em relação às ideias e propostas pessoais e de grupo para dar predominância ao protagonismo do Espírito Santo, quem tem funções consultivas não se sente diminuído por isso. Mas o mesmo desapego para dar predominância ao Espírito Santo deve caracterizar o exercício da autoridade. Esta também deve ser exercida com desapego em relação a visões pessoais, com abertura à escuta profunda de outros, como serviço e não como imposição arbitrária. É esta postura de exercício da autoridade, mais do que alguma forma de controlo do poder própria dos sistemas políticos (como é proposto pelo “caminho sinodal” alemão), que pode prevenir abusos.

Nesta linha, pode ler-se no documento final da última sessão da assembleia do Sínodo dos Bispos:

«82. O discernimento eclesial não é uma técnica organizativa, mas uma prática espiritual a ser vivida na fé. Requer liberdade interior, humildade, oração, confiança recíproca, abertura à novidade e abandono à vontade de Deus. Nunca é a afirmação de um ponto de vista pessoal ou de um grupo, nem se resolve na simples soma de opiniões individuais; cada um, falando segundo a sua consciência, abre-se à escuta daquilo que os outros em consciência partilham, para procurarem juntos reconhecer “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,7). Prevendo o contributo de todas as pessoas envolvidas, o discernimento eclesial é ao mesmo tempo condição e expressão privilegiada da sinodalidade, na qual se vive juntos a comunhão, a missão e a participação. O discernimento é tanto mais rico quanto mais todos são escutados. Por isso, é fundamental promover uma ampla participação nos processos de discernimento, com particular atenção ao envolvimento dos que estão à margem da comunidade cristã e da sociedade.

(…)

  1. Há casos em que o direito em vigor já prevê que, antes de tomar uma decisão, a autoridade é obrigada a proceder a uma consulta. A autoridade pastoral tem o dever de escutar aqueles que participam na consulta e, por conseguinte, não pode continuar a atuar como se não os tivesse escutado. Não se afastará, portanto, do fruto da consulta, quando estiver de acordo, sem uma razão que prevaleça e que deve ser oportunamente expressa (cf. CIC, cân. 127, § 2, 2°; CCEO cân. 934, § 2, 3°). Como em qualquer comunidade que vive segundo a justiça, na Igreja o exercício da autoridade não consiste na imposição de uma vontade arbitrária. Nos diversos modos em que é exercida, está sempre ao serviço da comunhão e do acolhimento da verdade de Cristo, na qual e para a qual o Espírito Santo nos guia nos diversos tempos e contextos (cf. Jo 14,16).
  2. Numa Igreja sinodal, a competência decisória do Bispo, do Colégio Episcopal e do Bispo de Roma é inalienável, porque radicada na estrutura hierárquica da Igreja instituída por Cristo ao serviço da unidade e do respeito pela legítima diversidade (cf. LG 13). No entanto, não é incondicional: uma orientação que surja no processo consultivo como resultado de um correto discernimento, especialmente se levado a cabo pelos órgãos participativos, não pode ser ignorada.»

Um outro aspeto deve ser sublinhado quando se fala no Espírito Santo como protagonista do caminho sinodal.

Se se pretende dar protagonismo ao Espírito Santo, função do Sínodo não é a de discutir a doutrina da Igreja. Esta doutrina não é fruto de perspetivas puramente humanas, nem está sujeita à usura do tempo. O Espírito Santo não pode contradizer-se a si próprio. Não nos diz hoje algo de diferente do que desde sempre nos tem dito a Sagrada Escritura, a Tradição e o magistério da Igreja.

Nesta linha, pode ler-se também no documento final da última sessão da assembleia do Sínodo dos Bispos:

«83. A escuta da Palavra de Deus é o ponto de partida e o critério de todo o discernimento eclesial. De facto, as Sagradas Escrituras testemunham que Deus falou ao seu povo, a ponto de nos dar em Jesus a plenitude de toda a Revelação (cf. DV 2), e indicam os lugares onde podemos ouvir a sua voz. Deus comunica connosco em primeiro lugar na liturgia, porque é o próprio Cristo que fala “quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura” (SC 7). Deus fala através da Tradição viva da Igreja, do seu magistério, da meditação pessoal e comunitária das Escrituras e das práticas da piedade popular. (…)».

Função do Sínodo não é, pois, a de discutir a doutrina da Igreja, mas a forma de a viver e comunicar nos dias de hoje. Se assim não fosse, estaria aberta a porta ao relativismo. Também é só desta forma, com estas “balizas”, que o Sínodo pode reforçar a unidade da Igreja e não a sua fragmentação.

 

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica. 



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