Fórum da Aliança das Civilizações
António Marujo | 28 Nov 2024
Entre Setembro de 2023 e Abril de 2024, há registo de várias centenas de ataques terroristas contra lugares religiosos em todo o mundo. Desses, a maior parte verificou-se na Birmânia (Myanmar), com 200 lugares de oração atacados desde 2021, alegadamente pelos militares mandados pela Junta que governa o país; a seguir vem a Ucrânia (129 desde a invasão russa) e Gaza em terceiro lugar (com 16 cemitérios, 72 mesquitas e duas igrejas destruídas, apenas entre 7 de Outubro e 31 de Dezembro do ano passado).
Se considerarmos só os ataques mais importantes, a tendência também é crescente – e preocupante: em 2021 houve oito ataques mais relevantes; em 2022 foram 14; no ano passado o número chegou aos 19 e, até Outubro deste ano, esse número já ia em 12.
Este responsável dá alguns exemplos dos ataques mais significativos: em Janeiro, no Irão, foi atacado o cemitério do Jardim dos Mártires junto da mesquita Saheb al-Zaman, onde duas bombas mataram mais de 100 pessoas e feriram mais de 200. Em Fevereiro, no Burquina Faso, mais de 20 pessoas foram assassinadas e mais de dez ficaram feridas quando se encontravam numa igreja. Em Junho, na Rússia, duas igrejas ortodoxas e uma sinagoga foram atacadas de forma coordenada, provocando 20 mortos e mais de 40 feridos. E em Julho, em Omã, um ataque num encontro de muçulmanos xiitas matou seis pessoas e feriu mais de 30.
Os dados foram revelados na conferência sobre salvaguarda de sítios religiosos, que decorreu no Estoril na quarta-feira, 27, no âmbito do 10º Fórum da Aliança das Civilizações das Nações Unidas (ACNU), que decorreu no Centro de Congressos do Estoril, entre os dias 25 e 27. Esses sítios são lugares onde as pessoas “se juntam para participar em cerimónias, rezar, meditar”, são lugares “especialmente vulneráveis” e alvos de quem procura atacar organizações religiosas, afirmou o Alto Representante para a ACNU, o espanhol Miguel Ángel Moratinos. Por isso devem “ser respeitados como locais de paz e harmonia, onde os fiéis se devem sentir seguros”.
Fala-se de lugares de oração, mas também se podem incluir estruturas educativas, abrigos para quem não os tem e outras estruturas sociais, exemplificou o responsável. Por isso, quaisquer actos de violência em relação a esses lugares devem ser condenados.
Um plano de acção para a salvaguarda
Moratinos convidou ainda os estados presentes a apoiar o documento “Anéis de Paz – Plano de Acção das Nações Unidas para a Salvaguarda dos Sítios Religiosos: Em unidade e solidariedade para um culto seguro e pacífico”. Nele, ACNU propõe-se, entre princípios mais genéricos de promoção do espírito de “respeito e a compreensão mútuos” ou da prossecução de esforços de “prevenção do extremismo violento através da educação, fazer também um “mapeamento dos locais religiosos em todo o mundo” que traduza “a espiritualidade dos locais religiosos”. O desenvolvimento de planos multidisciplinares, a colaboração com os líderes religiosos e o envolvimento da sociedade civil, bem como a integração de jovens na tomada de decisões, são outras recomendações acometidas às Nações Unidas e que são referidas no plano (disponível em inglês na página da ONU).
Para os líderes religiosos, o plano sugere iniciativas de oração conjunta, o envolvimento regular em iniciativas de diálogo inter-religioso, o contacto com pessoas das próprias comunidades que possam ser propensas “à radicalização e ao possível recrutamento por grupos extremistas violentos, a educação sobre outras religiões e o envolvimento em redes sociais e sítios digitais para alargar o conhecimento acessível sobre as diferentes religiões, entre outros temas.
Os fornecedores de serviços tecnológicos e digitais devem também ter uma missão, de acordo com este documento aprovado. Entre outras acções, recomenda-se: a proibição da distribuição de conteúdos terroristas e extremistas; mecanismos de denúncia; a melhoria da tecnologia e da transparência; a criação de parcerias com governos, sociedade civil e instituições de ensino para a rápida remoção de conteúdos terroristas e de extremismo violento das plataformas em linha.
No âmbito de cada país, o documento sugere que os “locais religiosos sejam definidos como alvos vulneráveis e incluídos nas estratégias e planos nacionais relevantes”; a possibilidade de criar unidades especializadas para salvaguardar esses lugares.
A partilha de informação, o debate entre os fiéis, as parcerias entre líderes religiosos, sociedade civil e estados, bem como a consciencialização sobre como responder a ataques e a organização de iniciativas que ajudem a divulgar esse tipo de informação também integram o documento.
Acusações violentas entre Arménia e Azerbaijão
Se no campo dos princípios é possível aprovar documentos deste género, a sua aplicação nem sempre corresponde aos enunciados. Isso mesmo se verificou na própria sessão: a dado momento, registaram-se três intervenções praticamente seguidas de representantes do Azerbaijão: o xeque Allahshukur Pashazade, presidente do Conselho dos Muçulmanos do Cáucaso e co-presidente do Conselho Inter-Religioso do país, enalteceu o governo do Presidente Ilham Aliyev, no cargo desde 2003. O regime, condenado em vários relatórios internacionais, “está a restaurar aldeias nos territórios libertados” de Artesaque (Nagorno-Karabakh), disse o líder religioso.
O ministro da Cultura do país, Adil Karimli, interveio no mesmo sentido para defender que “sem garantir a protecção dos lugares de culto é impossível garantir direito à liberdade religiosa”. O ministro assegurou que o governo de que faz parte se “compromete a salvaguardar todos os lugares religiosos no seu território” por igual, independentemente do credo. A política do Presidente, acrescentou, é “promover a diversidade cultural e religiosa”, enumerando vários fóruns internacionais organizados pelo seu país – o último dos quais foi a COP29, sobre o clima, e incluindo três cimeiras no âmbito do diálogo inter-religioso; o Papa Francisco esteve, aliás, com o xeque Pashazade, em Outubro de 2016, num encontro inter-religioso com líderes judaicos, muçulmanos e cristãos ortodoxos russos.
Mas apesar destas declarações, “hoje” está a acontecer a destruição da herança cristã no Nagorno, incluindo a destruição de igrejas, acusou o bispo Vrtanes Abrahamyan, da Igreja Apostólica Arménia. Mais de um milhão de arménios foram expulsos de suas casas, há igrejas e lugares cristãos a serem destruídos, acrescentou.
Um relatório publicado em Junho deste ano pelo Centro Europeu para a Lei e a Justiça corrobora pelo menos várias destas acusações: “O Apagamento Sistemático da Herança Cristã no Nagorno-Karabakh”, o título do documento, regista a existência de 500 sítios culturais com aproximadamente 6.000 relíquias do património cristão arménio. “Entre Novembro de 2020 e Setembro de 2023, dezenas de sítios do património cristão arménio em Nagorno-Karabakh foram destruídos ou danificados”, acusa o relatório, que identifica várias igrejas e lugares destruídos ou vandalizados. “Quando não foram demolidos, muitos destes sítios foram encerrados ao público, mesmo aos peregrinos. Actualmente, com o controlo total do Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão, na sequência de uma ofensiva militar em Setembro de 2023, a destruição do património cultural da Arménia só tem aumentado, com o Azerbaijão a recusar a entrada de observadores estrangeiros para verificar a situação e a fazer um profundo “revisionismo cultural”, negando que o património arménio tenha simplesmente existido.
Na conferência do Estoril, o comentário do bispo arménio motivou uma reacção violenta dos representantes do Azerbaijão, que acusaram o líder religioso de, sob essa capa, se esconder um criminoso que participou em massacres de azeris. A mesa teve de intervir, com Moratinos a dizer que esta era uma cimeira “construtiva” e não uma reunião do Conselho de Segurança… (as intervenções referidas podem ser vistas no vídeo da sessão, a partir dos minutos 45’, 58’ e 1h59’)
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