Andriy viera para Portugal com a mãe e avó antes
de começar a guerra na Ucrânia. Era filho de mãe russa e pai ucraniano. Aquele
rapazinho, sempre sorridente, com uns lindos olhos azuis e cabelo preto a
despontar depois de forte quimioterapia, entrara na escola num tempo de
remissão da doença. Já na iminência da possível guerra, o pai, ucraniano,
temendo pela saúde tão frágil de seu filho, um ano e meio antes da invasão,
enviara a mulher e a sogra com o rapazinho para Portugal, onde já tinham
parentes, mas ele como médico ficara no seu país, na sua casa e no seu
hospital, disponível para participar na defesa da Ucrânia. Andriy, apesar da
doença, com uma bolsa de estudo oferecida pelos pais do colégio, em dois
anos conseguira aprender português e completar a Primária aos doze anos. Agora
ia tentar fazer 5º e 6º num só ano, se conseguisse, e aquele era o seu
primeiro dia na turma do 6º ano!
Desde o início se revelara uma criança muito
especial… andava sempre com um caderninho de apontamentos, diariamente escrevia
as novas palavras que ia aprendendo… tinha uma curiosidade permanente… muito
atento e trabalhador incansável, levava semanalmente um novo livro da
biblioteca para casa, lia-o de fio a pavio e perguntava tudo até
compreender! Metia conversa com grandes e pequenos, colegas e
professores, tentava falar com todos no recreio, partilhava sempre o pequeno
lanche que levava… e pouco a pouco, à medida que o tempo passava, todos
gostavam cada vez mais dele!
Todos… menos o delegado de turma daquele sexto
ano… o Eugénio! Já o conhecia de nome e de vista, como todos os alunos da
escola, mas não gostava nada do colega ucraniano…
De início, na Primária, todos tinham estranhado
aquele menino estrangeiro, mais velho que eles, que aparecera a meio do ano; a
professora, na véspera da sua chegada, explicara a todos que aquele novo aluno
vinha de muito longe, ainda não sabia português e estava dispensado da
Ginástica, não podendo jogar futebol, nem correr, porque diziam estar a
recuperar de uma doença grave. Muito bem-comportado, magrinho e alto, sempre
limpo, Andriy aparecia com um gorro azul-forte da cor dos olhos, enfiado até
às orelhas, roupas pobres, sapatos gastos e cambaios, e até a mochila era muito
velha. Cuidava muito bem de todo o material escolar, aproveitava sempre dos
dois lados, todas as folhas de papel e usava os lápis pequeninos até ao
fim. Não tinha computador, nem telemóvel, mas depressa aprendera com os outros
a usar o computador da escola. No bolso fundo do casaco-pingão, trazia
sempre um pequeno instrumento musical - o seu único tesouro - e
muitas vezes lhe pediam que o tocasse, pois como depressa se veio a saber, para
além de ser excelente a matemática, ele era sobretudo, um exímio tocador de
flauta, que aprendera desde pequeno com o avô na sua terra natal…
Eugénio, porém, delegado de turma desde o
5º ano, não gostava nada dele, porque sempre ouvira o pai dizer-lhe em
casa, que tinha de honrar o nome de família e ser o melhor de todos… ’Eugénio,
lembra -te disto! Tens o nome do teu pai, do teu avô e bisavô! Não podes
falhar! Tens de ser sempre o melhor em tudo…´Eugénio interiorizara essa
obrigação já na Primária e até chorava quando tirava menos de 18
valores, ou menos de 90 por cento, em qualquer teste ou trabalho… E por isso,
receava a chegada à turma daquele rapaz estrangeiro, pois depressa o pressentiu
como seu provável rival…
As semanas foram passando, o sol outonal ia
dando lugar às primeiras chuvas, o tempo piorara, chegara o frio, e
Andriy começou a faltar de vez em quando, porque a mãe receava que ele ficasse
doente com o frio e a chuva… mas sempre comparecia nos testes, procurava
acompanhar, em casa, as matérias estudando pelos livros e tirava muito
boas notas, embora ligeiramente abaixo das notas de Eugénio, excepto em
Matemática, matéria em que Andriy frequentemente tirava igual ou mesmo
melhor… mas Andriy não sonhava sequer com entrada em competições. Tudo fazia por
gosto e convicção! Queria ser grande e ajudar a família, merecendo as
oportunidades que lhe davam…
Na turma já todos o admiravam, queriam ser
amigos de Andriy e convidavam-no para suas casas. Todos menos Eugénio, que,
entretanto, fizera anos e convidara toda a turma para ir ao cinema e lanchar em
sua casa, excepto Andriy. Decididamente, ele não queria ser amigo de Andriy! Claro
que este tinha sabido e ficara triste, mas a mãe dizia-lhe muitas vezes: ‘Não
te preocupes, meu filho! Não fiques triste! Não se pode agradar a toda a gente
e nestas idades essas coisas acontecem… mas vais ver que ele muda e ainda vai
querer ser teu amigo…’
Um dia, num teste de matemática, quase no
fim do primeiro trimestre, a professora anunciara que haveria exercícios com
três graus de dificuldade e o último grupo de exercícios valia o máximo de
pontuação, o que significava passar de 16 valores para 20. Só para quem neles
acertasse! Durante o teste, Eugénio atrapalhou-se e não conseguia resolver os
últimos problemas. Andriy, sentado na carteira ao lado, vendo-o quase a
chorar, teve pena dele e passou-lhe a solução sem que ninguém visse. Sabia como
era importante para ele ser o melhor, por ser delegado e por causa do pai… e na
hora de terminar e entregar os testes, Andriy fez mais: entregou a sua folha
passada a limpo, mas sem a resolução dos últimos exercícios…! E assim, na
semana seguinte, quando a professora devolveu os testes já corrigidos… para
espanto de todos, em vez de Eugénio e Andriy terem nota igual, como se
esperava, um teve 20 e o outro 16… todos bateram palmas a Eugénio e este ficou
muito corado! Andriy sorriu, contente! À saída da sala, houve uma breve troca
de olhares entre os dois, que só a professora notou e logo entendeu o que se
tinha passado… aliás, ela já de algum modo o pressentira, mas nada disse e nada
fez… A verdade é que a partir daquele dia, para espanto dos colegas, Eugénio
passou a ser visto muitas vezes na companhia de Andriy… a partilharem o lanche
nos intervalos, a conversarem, a jogarem xadrez, ou a estudarem juntos… e ali
começou a nascer uma sincera amizade entre eles, que Andriv aceitava com
naturalidade…
Entretanto, ia haver na escola, - como era
costume! - uma reunião de pais por ciclo, seguida de um breve espetáculo
dos alunos seus filhos e de um jantar por eles preparado. Nessa festa de 5º e
6º anos, para além de poesias e alguns ‘sketches’ cómicos de imitações, havia
números musicais e estava previsto que Andriy tocasse flauta, o que muito o
entusiasmava. Seria a primeira vez que ia tocar para os pais dos colegas e a
mãe também estaria presente.
Chegado o dia, os alunos estavam todos excitados
e nervosos. Contudo, Andriy não aparecia… e à última hora, a mãe telefonou
do hospital, com voz aflita, explicando que Andriy fora à consulta e
tivera de ficar internado para mais exames e uma transfusão de sangue. As
análises revelavam que ele tinha piorado repentinamente, mas ele queria muito
participar e ver a festa… por isso, com ajuda do médico e com o seu computador,
se a professora concordasse, ele faria um esforço e tocaria flauta para os pais
e colegas por ‘zoom’ e também poderia assistir a tudo o que ia acontecer na
escola… todos ficaram muito tristes e consternados com as notícias, mas a
professora e alguns pais logo prepararam tudo para que em ‘vídeo-conferência’ a festa de pais e filhos pudesse ter lugar com Andriy e a mãe a
participarem e acompanharem mesmo à distância… Assim aconteceu, e na
devida altura, o rapazinho tocou maravilhosamente, mas no final da sua
apresentação, de modo espontâneo, depois de muito o aplaudirem, todos os
colegas quiseram dizer-lhe uma palavra, desejando as melhoras e pedindo que
regressasse depressa… Eugénio quis ser o último. Chamando o pai, para junto de
si, deu-lhe a mão e muito corado falou então com voz trémula: ‘Andriy, quero
dizer-te e quero que todos saibam que tu é que mereces ser o delegado desta
turma! Tu és o melhor! Quero pedir-te desculpa por ter sido mau para ti! Tu és
mesmo o melhor! E no último teste de Matemática, eu não sabia fazer os
exercícios finais, mas tu sabias. Sacrificaste a tua nota, deste-me a solução
para ser eu a ter 20 valores e tu não fizeste o exercício, e ficaste só com 16!
És um grande amigo e eu ia sentir-me muito mal para toda a vida, se não
contasse aqui hoje a verdade a todos! Quando estiveres bom, vais voltar, se
Deus quiser, e vamos todos pedir à nossa professora para seres tu o delegado da
turma! Obrigado, amigo! Obrigado, Eugénio!’
Ao terminar aquelas palavras, todos estavam
muito comovidos… na escola e no hospital! Pais, alunos e professora, todos de
pé, e voltados para Andriy, batiam-lhe palmas com toda a força e coração! Entretanto,
Eugénio e o pai abraçaram-se fortemente! E o pai só lhe disse ao ouvido: ‘Bravo,
foste muito corajoso! Disseste a verdade! Agora sei que honras o teu nome! Não
com vintes, mas com o teu carácter…’
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