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quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

“E Deus em nós?” - Conversas de Maria João Avillez

Com Ilda David

Chegamos ao fim da série de Conversas de Maria João Avillez – na Capela do Rato, em Lisboa – em que ouvimos gente da cultura: do jornalismo, do teatro, da música, da pintura, e até da gestão e, inevitavelmente, tão ricas quanto diferentes foram as respostas a uma mesma pergunta: “E Deus em nós?”. «Se Deus nos ofereceu talentos que se tornaram de pertença pública e partilhável, como “levá-Lo” aos outros?» pergunta Maria João Avillez … e nesta última Conversa escutámos Ilda David.

O Capelão, Padre António Martins fez a apresentação e falou-nos de obras emblemáticas de Ilda David: do painel do Pentecostes existente na Capela do Rato, da autoria da pintora, “onde podemos pressentir no movimento das cores o vento impetuoso e o fogo do espírito e cada um de nós pode imaginar-se envolvido e arrastado por aquele fogo o fogo do espírito que continuamente renova a igreja”, da ilustração da nova edição em oito volumes da primeira tradução da bíblia para a língua portuguesa de João Ferreira de Almeida onde “o texto bíblico se traduz em imagens… realça a inspiração de quem pinta…sobretudo, atrevo-me a dizer, da palavra bíblica”.

A Conversa continua com Maria João Avillez que segue a mesma linha de pensamento “uma ideia que eu sempre tive em relação à sua pintura... seja de que época for… há uma poesia, uma espiritualidade ou algo de divino… a Ilda revê-se de algum modo neste meu olhar de pura leiga?...eu tenho a ideia de estar a ler poesia ...de poder estar a rezar também enquanto vejo um dos seus quadros.”

E Ilda David, dizendo que não sabe, dá-nos a resposta imensamente poética! “Não sei, talvez porque quando se desenha ou quando se pinta cria-se um clima de concentração, alguma ideia de textos, algumas paisagens, algumas memórias que podem transmitir depois essa sensação de espiritualidade, de algo que nos interpela... é sempre uma surpresa para quem está a desenhar, o que pode aparecer ... mesmo que se controle há sempre a hipótese de se ficar muito contente ...ou muito descontente e depois voltar lá, mas há alguma incerteza, um medo, medo bom às vezes ...talvez seja isso que pode transmitir esse lado de transcendência.”

«Se Deus nos ofereceu talentos…” o que são os talentos, como aconteceram no concreto da vida, como os recebeu, de quem? “a Ilda nasceu no campo, em Benavente, é uma terra pequena…foi influenciada pela paisagem da sua infância”… “acho que sim, tudo parte da infância, as primeiras imagens que se viu, o que se recusa, o que se guarda... acho que à medida que o tempo vai passando essas primeiras imagens, essas primeiras afinidades com a paisagem ou com as pessoas, com as histórias ... a luz, o céu, as nuvens... a minha paisagem era a lezíria, o rio, era um céu muito aberto, muito escuro ou muito claro mas muito dramático ... isso acompanha sempre...quando vim para Lisboa fiquei apaixonada também pelo céu de Lisboa, eu estava sempre em estado de admiração sobretudo no outono quando a luz cai muito devagarinho e refletia-se no rio.” E também as memórias fazem parte dessa herança que forma os talentos: “eu tinha uma avó de quem gostava muito…ela  gostava muito de festas, gostava muito do circo …também gostava muito das festas da Páscoa, do Carnaval… fazia máscaras para nós todos, mas o Natal era numa época mágica para mim...começava logo porque no dia um de dezembro  saíamos para ir apanhar musgo e as plantas que iam servir de árvores, portanto, íamos criar uma micro paisagem ...as pessoas lá em casa transformavam-se todas em artistas... contava-se a história do nascimento do menino Jesus …também se pintava e portanto estávamos a fazer uma ilustração de uma história”.

Mas há um momento em que os talentos se tornam de pertença pública e partilhável, como “levá-Los” aos outros?» haverá algum momento determinado em que se sinta a necessidade de desenhar ou pintar algo que se quer transmitir? “não, há um tempo que se sobrepõe ... as coisas vão-se acumulando ... uma pintura acabada, que eu considero acabada, também tem muito de inconsciente, tem muito dessas memórias …eu lembro-me de uma definição feita por um pintor que eu gosto muito, que numa entrevista disse que quando olha para a pintura e a pintura está a olhar para ele, está acabada. Para mim também é assim…, mas até aí é sempre uma surpresa…e quando é uma má surpresa, muitas vezes pinta-se por cima e às vezes quando se começa a pintar por cima começa-se a ver que há coisas que não estão tão mal, pode-se recuperar ... também às vezes o que está muito mal e não se apaga nem se pinta por cima, muito tempo depois fica-se surpreendido, dali pode sair alguma coisa mesmo nova”.

Há um momento em que se percebe que existe uma vocação, como se manifesta? “há um sentimento que nasce com certeza muito cedo que é sentir-se acompanhado ... em criança, eu lembro-me que me afastava, fazia qualquer coisa, podia ser desenhar podia ser outra coisa, eu acho que é esse lado de estar acompanhado não ficar sozinho...e depois também é uma teimosia …, portanto, também tem que haver esse sentimento de descobrir, ter essa curiosidade por caminhar ... ultrapassar dissabores. “Quando tem uma surpresa ou quando faz uma descoberta sente que não está a fazer criar sozinha, que há qualquer coisa que a transcende, pensa no sagrado?” “Sim, o Martim Sousa Tavares (numa Conversa anterior) referiu-se a isso... cada vez que olhamos para uma obra de arte pensamos que os autores não podiam ter estado sozinhos ... nós estamos não sozinhos, há sempre algo, alguém... estamos acompanhados…eu tive uma educação religiosa e quando era muito pequenina tinha uma gravura no meu quarto que era uma litografia a cores que tinha dois meninos a atravessar uma ponte que se estava a partir, sobre um rio que estava  muito tumultuoso e eles tinham por trás um anjo... a minha mãe dizia que era porque os meninos estão sempre acompanhados, todos os meninos têm um anjo... portanto essa companhia também pode passar para o trabalho, pode passar para sempre que precisamos.”

E, finalmente, as influências que têm marcado o percurso de Ilda David são inúmeras, apenas alguns exemplos: “a pintura paleocristã é uma pintura muito forte porque se nota aquela carga de alguém que estava a ser perseguido, as pinturas eram feitas em catacumbas em sítios escondidos, mas havia essa necessidade de trazer beleza aquele lugar e essa pintura influenciou-me bastante, eu tenho muitas afinidades com aquela maneira muito deslaçada porque era feita com muito poucos meios, em sítios sem luz … e depois as iluminuras são coisas interessantíssimas, a pintura da idade média...e os livros que transbordam muitas vezes para a minha pintura”.

Acabamos em beleza esta série de Conversas…esperamos mais!


Rosa Ventura
Professora de Música



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